Quando um cirurgião deve parar de trabalhar?
A decisão de parar de operar é individual e solitária na maior parte das vezes. Assim, o médico precisa trabalhar a inteligência emocional.
Já pensou para pensar que não existe um limite de idade para exercer a medicina, nem mesmo operar? A única restrição se refere à aposentadoria compulsória imposta aos professores que lecionam em universidades públicas a partir dos 75 anos. Muitos recebem o título de professor emérito pelos anos de serviços prestados. Uma alternativa é continuar desempenhando atividades administrativas e de pesquisa.
As sociedades de especialistas brasileiras não oferecem diretrizes ou orientações sobre os diversos aspectos da longevidade profissional dos cirurgiões-médicos. Nos Estados Unidos, o Colégio Americano de Cirurgiões (ACS, em inglês) publicou uma declaração em 2016 onde recomenda a realização de testes físicos, visuais e neurocognitivos para cirurgiões mais maduros, mas em base voluntária. Sem a necessidade de avaliação dos resultados.
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“Na verdade, o que o Colégio Americano de Cirurgiões recomenda é que o cirurgião procure um médico para fazer uma avaliação das suas condições clínicas quando chegar a uma certa idade, o que não é privilégio do cirurgião, vale para qualquer médico em atuação. Deve-se realizar um check-up com consultas periódicas”, esclareceu o cirurgião geral Samir Rasslan, professor Sênior do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em entrevista ao Portal de Notícias da PEBMED.
Rasslan, que tem mais de 70 anos de idade e mais de 50 de carreira, continua operando e faz suas avaliações de saúde periodicamente, além de cuidar da saúde física e mental.
“Pratico esportes regularmente, caminho de seis a sete quilômetros três vezes por semana, estou lúcido, não tremo, estudo, estou ligado a um hospital universitário, vou a congressos médicos e dou aulas. Então, me sinto ainda em condições de operar. Quando perceber que não estou bem ou não sentir mais prazer em fazer o que fiz a vida inteira, vou tirar a conclusão de que é hora de parar”, afirmou o ex-presidente do Colégio Brasileiro de Cirurgiões de 1995 a 1997.
Ausência de diretrizes e o papel dos colegas de profissão
É fato que a ausência de diretrizes aumenta as responsabilidades individuais e a dos próprios colegas de profissão. Logicamente, o cirurgião não deve expor o paciente ao risco se não estiver apto a realizar um procedimento cirúrgico. Por contrapartida, sua própria equipe cirúrgica deve alertá-lo quando ele não tiver mais condições físicas ou mentais para comandar o bisturi.
O problema é que dificilmente os médicos admitem ou mostram suas fragilidades aos colegas, principalmente se já estiverem em uma idade mais avançada. Nessa situação, a observação e a opinião dos familiares sobre as habilidades do cirurgião ganham um importante peso nesta avaliação.
“Caso eu mesmo não conseguir captar o meu déficit intelectual ou motor, já tem pessoas orientadas para me bloquear antes de eu ter que parar de uma outra forma. Contudo, estou perfeitamente tranquilo em relação a isso e estarei preparado para quando eu tiver que parar de operar”, revelou Rasslan.
Outro cirurgião-médico que continua operando ativamente – mesmo com a idade avançada – é o cirurgião plástico José Badim, fundador do Hospital Badim, no Rio de Janeiro. Com 91 anos de idade, formado há 65, 52 anos somente de cirurgia, Badim enfatiza que a longevidade depende de cada cirurgião.
“Sinto-me maravilhosamente bem. Outro dia mesmo operei por quatro horas. Adoro essa rotina. Só vou parar se algo me impedir, uma doença. Enquanto estiver apto e com as mãos firmes, continuo. Considero que se o cirurgião estiver com as mãos firmes, deve manter as suas atividades. Um fator que ajuda muito na longevidade pra mim é não ter vícios, inclusive, beber e fumar”, ressaltou o cirurgião plástico, em entrevista ao Portal de Notícias da PEBMED.
Necessidade de autoavaliação e atualização
Como na prática as entidades médicas brasileiras não possuem políticas ou programas para orientar os cirurgiões que desejam envelhecer operando, é necessário que o próprio profissional faça uma autoavaliação periódica e se mantenha atualizado sobre as principais descobertas, mudanças e novas diretrizes dentro do seu campo de atuação.
“É fundamental buscar sempre a atualização técnica. A medicina evolui rapidamente e precisamos ser receptivos às novas tecnologias e aos novos tratamentos na prática médica. Eu, particularmente, voltei grande parte da minha carreira ao ensino e à pesquisa, e isso me capacita a atuar com segurança e tranquilidade. Porém, mesmo com o conhecimento da técnica, o médico não pode descuidar da visão humanitária do cuidado”, frisou José Badim.
Para o cirurgião geral Samir Rasslan, os desafios diários da carreira médica incentivam os profissionais a se reciclarem, seja trocando experiências com os colegas ou pesquisando novos caminhos.
“Todo dia é um novo desafio. Cada cirurgia é uma programação diferente! Você pode fazer a mesma operação, mas ela não ocorre do mesmo jeito em determinadas circunstâncias, dependendo da situação do paciente, do tempo de evolução da doença, da infraestrutura do hospital. Então, o primeiro desafio é manter a qualidade adequada no tratamento do seu paciente”, destacou.
Como se preparar para a hora de parar de operar?
Parar de operar é uma decisão, na maioria das vezes, individual e solitária. O profissional tem que avaliar a sua real capacidade física, motora e mental, além de pesar os prós e os contras.
“A vida nos empurra para começar a trabalhar, mas a hora de parar depende da inteligência e da capacidade de olhar para dentro de si. Esse é um exercício difícil, mas necessário. As habilidades devem ser analisadas, além do habitual. É preciso avaliar a capacidade física, reconhecer seus limites atuais e a função neurológica central e periférica”, analisou a coordenadora do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/UNICAMP), Ana Terezinha Guillaumon.
Em entrevista ao Portal de Notícias da PEBMED, a coordenadora médica – que possui mais de 65 anos, 40 de profissão – lembra que existem cirurgiões que não podem parar de operar, seja para manter o sustento familiar ou por dificuldade de encarar novos desafios.
“Considero que os cirurgiões passam a vida trabalhando, com todos os riscos inerentes à profissão, como sono restrito, estresse por cada doente com doença complexa e sobrecarga de trabalho. Quem atende doentes do Sistema Único de Saúde (SUS) também enfrenta a pobreza e a falta de oportunidades dos seus pacientes. Portanto, é fundamental usufruir de momentos de descanso, seja com trabalhos de arte ou lazer. Isso nos faz mais saudáveis e felizes”, pontuou.
Ana Guillaumon acrescentou que ainda não está vivendo esse momento de decisão profissional, mas já está se preparando para o futuro.
“Quando penso neste momento, considero minhas habilidades de artista plástica. Faço escultura e gosto muito de desenhar, além do hábito da leitura, que vai fazer parte de minha rotina quando tiver que parar de trabalhar no ofício pelo que me apaixonei racionalmente (embora seja um paradoxo, pois paixão não é razão)”, concluiu.
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