Paciente masculino 28 anos, sem comorbidades, ASA1, internado de forma ambulatorial para a realização de hemorroidectomia. Na visita pré-anestésica encontrava-se calmo, em bom estado geral, lúcido e orientado no tempo e espaço com jejum de 8 horas. Negava qualquer comorbidade ou cirurgias anteriores. Relatava fazer uso de anabolizantes para fins estéticos, sendo o último ciclo realizado há um mês.
Ao exame físico apresentava apenas uma ligeira hipertensão, eupneico, eucardico, acianótico, anictérico, afebril, PA 145 X 92 mmHg, FC 67 bpm, SpO2 99% em ar ambiente. Exames laboratoriais dentro dos limites da normalidade. Realizado pré-anestésico com midazolan 15 mg SL e encaminhado ao centro cirúrgico.
A equipe anestésica optou por realizar uma raquianestesia hiperbárica com 12 mg de marciana pesada. Paciente deu entrada no centro cirúrgico sonolento, respondendo ativamente os comandos verbais. Realizado venóclise em MSE com jelco 20G e iniciado hidratação, analgesia, antibioticoterapia profilática e profilaxia para náuseas e vômitos pós-operatórios.
Realizado raquianestesia hiperbárica com marciana pesada 12 mg com agulha 27G descartável, punção única, primeira tentativa, sem intercorrências.
Após testado nível sensitivo anestésico, paciente foi liberado para posicionamento em posição de litotomia com cefalodeclive. Cirurgia e anestesia realizada sem intercorrências, paciente permaneceu normotenso e eucardico e sem nenhuma alteração hemodinâmica. Após o fim do procedimento, com duração de aproximadamente 120 minutos, foi encaminhado a sala de recuperação pós-anestésica com Aldrete 8, sem movimentação de membros inferiores.
Quando começou a retornar os movimentos dos membros inferiores, foi encaminhado para o quarto e algumas horas depois, começou a relatar dor de forte intensidade em ambas as pernas que piorava com a movimentação. Realizada analgesia venosa, porém, sem sucesso. Ambos os membros se apresentavam com certa palidez cutânea, com ligeiro edema (+/4+) e com diminuição da temperatura local. Ao exame neurológico havia paresia bilateral principalmente em região de panturrilha para baixo.

Hipótese diagnóstica: dor em membros inferiores após hemorroidectomia
Paciente que apresenta dor de forte intensidade que piora com a movimentação após cirurgia em posição de litotomia deve-se pensar em síndrome compartimental da perna sadia (SCPS)
Essa síndrome é de rara ocorrência, porém de grande gravidade e caso não seja diagnosticada e tratada a tempo, pode levar ao óbito.
A SCPS, ou síndrome compartimental aguda, ocorre pelo aumento da pressão no interior de um compartimento osteofascial fechado, reduzindo a perfusão capilar e levando a uma isquemia e hipoxia tecidual, podendo chegar a necrose muscular e nervosa. No caso de membros sadios, ela ocorre sem um trauma direto e geralmente por mecanismos de posicionamento cirúrgico em procedimentos de longa duração, mais precisamente em posições de litotomia agravada pelo cefalodeclive. Também pode ocorrer por reposição volêmica agressiva em casos de pacientes politraumatizados.
O quadro clínico clássico é caracterizado pelos 5 Ps: Pain, Paresthesia, Pallor (palidez), Paralysis e Pulselessness, sendo os dois últimos, sinais mais tardios. O primeiro sintoma costuma ser uma dor de grande intensidade, localizada, sem trauma específico.
Diagnóstico
O diagnóstico é realizado pelo quadro clínico e pela medição da pressão compartimental pelo valor do delta P. O delta P corresponde à diferença de pressão entre a pressão arterial diastólica e a pressão compartimental do membro. Um delta P menor ou igual a 30 mmHg já é sugestivo de síndrome compartimental e o paciente deve ser encaminhado ao centro cirúrgico imediatamente, uma vez que o único tratamento para a SCPS é a fasciotomia descompressiva imediata dos quatro compartimentos. Para o diagnóstico, não há a necessidade de delta P diminuído em todos os compartimentos, uma medida apenas, abaixo de 30 mmHg, já é considerada diagnóstico.
Se a intervenção for realizada nas primeiras 6 horas o prognóstico é bem positivo com recuperação quase completa, se houver atraso de mais de 8 horas pode haver risco de lesão muscular irreversível e complicações como contratura de Volkmann, infecção e necessidade de amputação do membro.
O paciente em questão foi levado ao centro cirúrgico e realizado fasciotomia, teve boa evolução, permaneceu internado por 17 dias e teve alta sem sequelas.
Autoria

Gabriela Queiroz
Pós-Graduação em Anestesiologia pelo Ministério da Educação (MEC) ⦁ Pós-Graduação em Anestesiologia pelo Centro de Especialização e Treinamento da Sociedade Brasileira de Anestesiologia (CET/SBA) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) ⦁ Membro da Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) ⦁ Membro da American Academy of Pain Medicine ⦁ Ênfase em cirurgias de trauma e emergência, obstetrícia, plástica estética reconstrutiva e reparadora e procedimentos endoscópicos ⦁ Experiência em trauma e cirurgias de emergência de grande porte, como ortopedia, vascular e neurocirurgia ⦁ Experiência em treinamento acadêmico e liderança de grupos em ambiente cirúrgico hospitalar ⦁ Orientadora acadêmica junto à classe de residentes em Anestesiologia ⦁ Orientadora e auxiliar em palestras regionais e internacionais na área de Anestesiologia.
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