A fibrilação atrial (FA) é uma das arritmias mais comuns na prática clínica, tendo o acidente vascular cerebral isquêmico como sua complicação mais grave. Atualmente, os anticoagulantes orais são o tratamento de primeira linha para prevenção de AVC e embolia sistêmica em pacientes com fibrilação atrial.
Sabemos que adultos com histórico de hemorragia intracraniana espontânea apresentam alto risco de eventos cardiovasculares maiores. Entretanto, a terapia anticoagulante, embora reduza o risco tromboembólico, inevitavelmente carrega o risco de complicações hemorrágicas, sendo a hemorragia intracraniana a mais perigosa e associada a alta taxa de mortalidade. Alguns estudos mostraram que, apesar de aumentar o risco de hemorragia cerebral, a anticoagulação pode melhorar os desfechos funcionais.
Nesse contexto, foi publicada recentemente uma meta-análise que revisou os ensaios clínicos randomizados mais recentes que avaliaram a eficácia e segurança da retomada da terapia anticoagulante oral em pacientes. Após avaliação final, três ensaios clínicos randomizados — Apache-AF, SoSTART e PRESTIGE-AF — foram incluídos, envolvendo um total de 623 participantes. A idade média dos participantes foi de 78 anos e o CHA2DS2VAsc médio foi de 4.
Os desfechos primários variaram entre os estudos, com o SoSTART focando em recorrência de hemorragia intracraniana, o Apache-AF em AVC não fatal ou morte vascular, e o PRESTIGE-AF em AVC isquêmico e recorrência de hemorragia intracraniana.
Resultados
A terapia anticoagulante oral não reduziu significativamente a incidência de AVC isquêmico em comparação à ausência de anticoagulação ou terapia antiplaquetária. Entretanto, os resultados mostraram alta heterogeneidade (I²=84%), sugerindo possíveis diferenças metodológicas ou populacionais entre os estudos.
O uso de anticoagulantes orais reduziu significativamente o risco de qualquer evento vascular sintomático maior. A terapia anticoagulante oral não teve impacto significativo no desfecho composto de AVC ou morte vascular, provavelmente devido às evidências limitadas de apenas dois estudos.
Em relação a sangramento, o uso de anticoagulantes orais aumentou em 4x o risco de recorrência de hemorragia intracraniana.
Esse aparente paradoxo — menos eventos vasculares, mas mais recorrências de hemorragia intracraniana — pode refletir a tensão entre a anticoagulação sistêmica e a fragilidade da vasculatura cerebral. Enquanto os anticoagulantes reduzem o risco isquêmico ao prevenir a formação de trombos atriais, podem aumentar o risco de sangramento em vasos cerebrais frágeis, particularmente em contexto de angiopatia amiloide cerebral ou doença de pequenos vasos hipertensiva.
Discussão: anticoagulação por fibrilação atrial após sangramento intracraniano
Os resultados sugerem que, embora os anticoagulantes orais possam reduzir o risco de eventos vasculares maiores, aumentam significativamente o risco de recorrência de hemorragia intracraniana e de outros eventos hemorrágicos, indicando que as decisões clínicas devem considerar cuidadosamente benefícios e riscos.
O principal benefício da terapia anticoagulante oral em pacientes com fibrilação atrial é a prevenção de AVC isquêmico e embolia sistêmica. Como demonstrado nos ensaios incluídos, esse benefício também se estende a sobreviventes de hemorragia intracraniana. Os três ensaios (SoSTART, Apache-AF e PRESTIGE-AF) mostraram que os anticoagulantes reduziram a ocorrência de eventos cardiovasculares isquêmicos maiores. O estudo Apache-AF demonstrou que a terapia anticoagulante reduziu o risco de AVC isquêmico. De forma semelhante, o estudo PRESTIGE-AF mostrou que, em comparação à ausência de anticoagulação, os anticoagulantes orais diretos reduziram significativamente a incidência de primeiro AVC isquêmico.
Embora os hazard ratios individuais desses ensaios sugiram que os anticoagulantes podem reduzir o risco de AVC isquêmico, a análise combinada não atingiu significância estatística devido à alta heterogeneidade e à ampla amplitude dos intervalos de confiança.
A principal preocupação com a retomada da terapia anticoagulante em sobreviventes de hemorragia intracraniana é o risco de sangramento recorrente, particularmente nova HIC. De fato, observou-se risco significativamente maior de recorrência de HIC com anticoagulantes. De forma semelhante, o risco de eventos hemorrágicos maiores também foi significativamente elevado, o que reforça a necessidade de seleção cuidadosa de pacientes para anticoagulação, mesmo com DOACs.
Os estudos Apache-AF e SoSTART relataram maior incidência de recorrência de HIC em pacientes tratados com anticoagulantes em comparação àqueles sem anticoagulação, embora essa diferença não tenha sido estatisticamente significativa. O ensaio PRESTIGE-AF destacou esse risco, mostrando que a recorrência de HIC foi significativamente maior no grupo de DOACs.
As análises de subgrupos, especialmente aquelas focadas na localização da HIC, são cruciais. A HIC lobar está frequentemente associada à angiopatia amiloide cerebral, que aumenta o risco de recorrência hemorrágica. O ensaio PRESTIGE-AF não mostrou heterogeneidade significativa no risco de sangramento de acordo com a localização da HIC. No entanto, por razões de segurança, ensaios em andamento, como o ENRICH-AF (NCT03950076), suspenderam o uso de anticoagulantes no subgrupo com HIC lobar, destacando a necessidade de mais investigação nesse cenário.
Vale destacar que os estudos incluídos apresentaram heterogeneidade metodológica significativa, dificultando comparações diretas. Por exemplo, os ensaios Apache-AF e SoSTART permitiram o uso de terapia antiplaquetária nos grupos controle, o que pode ter influenciado os resultados. Em contraste, o PRESTIGE-AF excluiu o uso de antiplaquetários no grupo controle, permitindo uma avaliação mais clara dos efeitos da anticoagulação. Além disso, o uso predominante de DOACs no ensaio PRESTIGE-AF difere de ensaios anteriores que utilizaram antagonistas de vitamina K, tradicionalmente associados a um maior risco de sangramento.
Conclusão
Embora os anticoagulantes orais possam reduzir eventos isquêmicos em pacientes com fibrilação atrial e histórico de hemorragia intracraniana, eles também apresentam o risco incerto de sangramento recorrente, particularmente nova HIC. As evidências atuais apoiam o uso cauteloso de anticoagulantes orais diretos em pacientes cuidadosamente selecionados, mas são necessárias mais pesquisas para identificar os subgrupos ideais de pacientes e refinar o perfil risco-benefício da anticoagulação nessa população de alto risco.
Autoria

Juliana Avelar
Médica formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Cardiologista pelo Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia
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