A miocardite é uma doença inflamatória do miocárdio caracterizada por infiltração intersticial de células inflamatórias e destruição de células miocárdicas. A miocardite fulminante (FM), que representa cerca de 10% dos pacientes diagnosticados com miocardite aguda, é a forma mais grave da doença, caracterizada por início agudo, rápida progressão para choque cardiogênico, falência circulatória ou morte súbita. Aproximadamente um quarto dos pacientes com FM evolui para cardiomiopatia inflamatória crônica (inf-CMP), que cursa com dilatação ventricular esquerda, níveis elevados de troponina e NT-proBNP, ou um fenótipo hipocinético não dilatado.
Devido ao estado inflamatório persistente ou crônico do tecido miocárdico, pacientes com inf-CMP crônica geralmente apresentam sintomas e sinais de insuficiência cardíaca crônica, causados por hiperinflação e estresse oxidativo. O diagnóstico de inf-CMP baseia-se principalmente em evidências histológicas obtidas por biópsia endomiocárdica. Histologicamente, a inf-CMP é caracterizada por fibrose miocárdica focal ou difusa com infiltração de células inflamatórias. Embora resultados clínicos de alguns estudos tenham sugerido efeito terapêutico de imunossupressores (incluindo glicocorticoides e azatioprina), as opções de tratamento para inf-CMP permanecem restritas, especialmente quando decorrentes de FM.
A hidroxicloroquina (HCQ), um derivado da quinolina, é utilizada clinicamente há mais de 60 anos. Os efeitos da HCQ no sistema imune estão bem estabelecidos, incluindo inibição da sinalização dos receptores Toll-like, inibição de receptores linfocitários e redução da produção de citocinas pró-inflamatórias por macrófagos. Diante disso, levantou-se a hipótese de que a HCQ poderia ter efeitos terapêuticos em pacientes com inf-CMP crônica.
Nesse contexto, publicado recentemente um ensaio clínico multicêntrico de fase II (estudo HYPIC) para avaliar a eficácia e a segurança da HCQ combinada com prednisolona (PDN), em comparação à monoterapia com PDN, no tratamento de pacientes com inf-CMP crônica após FM.
Métodos
Ensaio clínico multicêntrico, aberto, com avaliador-cego, randomizado e controlado, comparou os efeitos terapêuticos e a segurança da HCQ em pacientes com inf-CMP crônica após FM em dois hospitais terciários chineses.
Foram incluídos pacientes entre 18 e 80 anos diagnosticados com inf-CMP crônica após FM, definidos pelos seguintes critérios:
- Disfunção ventricular esquerda (fração de ejeção <50%) diagnosticada por ecocardiografia nos 30 dias anteriores à randomização;
- Classe funcional II–IV da NYHA;
- Insuficiência cardíaca crônica (> 6 meses), não responsiva à terapia otimizada com IECA, BRA ou ARNI, betabloqueador e antagonista de receptor de mineralocorticoide;
- Troponina alta sensibilidade > 26,2 pg/mL e NT-proBNP >169 pg/mL;
- FM confirmada há mais de 3 meses de acordo com consenso e diretrizes nacionais;
- Diagnóstico de inf-CMP crônica confirmado por biópsia miocárdica;
- Ausência de vírus cardiotrópicos em análise por PCR;
Critérios de exclusão incluíram história de marca-passo ou CDI prévios e arritmias ventriculares graves.
Os pacientes foram alocados para:
- HCQ + PDN: Hidroxicloroquina 200 mg/dia + prednisolona 20 mg/dia por 12 meses (25 pacientes);
- PDN isolada: Prednisolona 20 mg/dia por 12 meses (25 pacientes).
O período de tratamento foi de 12 meses.
Desfechos
O desfecho primário do estudo foi o composto cardiovascular de tempo até morte cardiovascular ou transplante cardíaco, hospitalização por insuficiência cardíaca ou recorrência de miocardite, uso de marcapasso definitivo ou implante de CDI.
Os desfechos secundários foram as mudanças na fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE), diâmetro interno diastólico do ventrículo esquerdo, troponina cardíaca I de alta sensibilidade (hs-cTnI), NT-proBNP, proteína C-reativa ultrassensível (PCR-us) e velocidade de hemossedimentação (VHS), do basal até 12 meses.
A segurança foi avaliada por eventos adversos emergentes do tratamento (TEAEs), alterações nos principais sinais vitais (temperatura, pressão arterial, frequência cardíaca e frequência respiratória), eletrocardiograma de 12 derivações, exame físico e resultados laboratoriais.
Perfil proteômico plasmático
O plasma de pacientes com inf-CMP crônica foi analisado pelo painel Olink Inflammation Target 96, incluindo apenas aqueles com amostras completas nos três momentos (linha de base, 6 e 12 meses), pareados por idade e sexo, além de 16 controles saudáveis. A tecnologia baseia-se em anticorpos marcados com DNA que se ligam às proteínas-alvo e geram moléculas repórteres quantificadas por PCR em tempo real. Os resultados são expressos em NPX (Normalized Protein eXpression), valores log2 proporcionais à concentração proteica, em que 1 NPX equivale ao dobro da concentração.
Resultados
Entre novembro de 2021 e maio de 2023, foram randomizados 50 pacientes 1:1.
As características basais estavam bem balanceadas entre os grupos. A idade mediana foi de 40 anos, sendo 46% homens e 54% mulheres. Os sintomas NYHA classe II estavam presentes em 50%, classe III em 38% e classe IV em 12%. A FEVE mediana foi de 41%, e o DDVE mediano de 57 mm.
Os biomarcadores apresentaram: hs-cTnI mediana de 288,8 pg/mL, NT-proBNP de 1029 pg/mL, PCR-us mediana de 4,0 mg/L e VHS mediana de 12 mm/h.
O uso concomitante de terapias dirigidas por diretrizes (GDMT) para IC também foi semelhante entre os grupos na linha de base e, após 12 meses de tratamento, não houve diferenças significativas no uso de GDMT (P>0,05), excluindo assim a possibilidade de impacto de diferenças farmacológicas sobre os desfechos.
Um paciente descontinuou o tratamento devido a transplante cardíaco no grupo HCQ + PDN, enquanto dois pacientes do grupo PDN isolada descontinuaram por morte cardiovascular. Fora esses casos, nenhum paciente interrompeu permanentemente a medicação. Ao final, 24 pacientes do grupo HCQ + PDN e 23 do grupo PDN isolada completaram o estudo.
Desfecho primário
Durante o seguimento de 1 ano, o desfecho composto ocorreu em 21 pacientes (42,0%): 6 (24,0%) no grupo HCQ + PDN e 15 (60,0%) no grupo PDN isolada.
Pacientes do grupo HCQ + PDN tiveram risco significativamente menor do desfecho composto em comparação com o grupo PDN isolada. Além disso, ao comparar as taxas de hospitalização por insuficiência cardíaca e recorrência de miocardite, observou-se que a redução da recorrência de miocardite foi maior que a da hospitalização por insuficiência cardíaca no grupo HCQ + PDN (20,0% vs. 8%).
Desfechos secundários
Houve reduções significativas de hs-cTnI e PCR-us já no primeiro mês de tratamento no grupo HCQ + PDN. FEVE, NT-proBNP e VHS mostraram melhora significativa a partir do 3º mês. DDVE reduziu significativamente após 6 meses. A FEVE aumentou significativamente no grupo HCQ + PDN (P<0,05).
As diferenças estimadas entre grupos (IC 95%) foram:
- FEVE: +8,00
- DDVE: −4,00
- Troponina: −98,40
- NT-proBNP: −399,30
- PCR-us: −1,65
- VHS: −2,00
A taxa de recuperação da FEVE no grupo HCQ + PDN aumentou progressivamente de 8,0% no 1º mês para 83,3% no 12º mês, enquanto no grupo PDN isolada permaneceu baixa (0,0% a 21,7%). Diferenças significativas surgiram a partir do 3º mês (P=0,03) e persistiram até 6, 9 e 12 meses (P<0,001).
Segurança e tolerabilidade
As incidências de TEAEs relatados foram semelhantes entre os grupos.
- TEAEs ocorreram em 39 pacientes (78,0%): 18 (72,0%) no grupo HCQ + PDN e 21 (84,0%) no grupo PDN isolada.
- Eventos adversos graves ocorreram em 10 pacientes (40,0%) no grupo HCQ + PDN e em 17 (68,0%) no grupo PDN isolada.
Durante o estudo, 1 paciente do grupo HCQ + PDN foi submetido a transplante cardíaco e 2 pacientes (8,0%) do grupo PDN isolada morreram por parada cardíaca (sem DAC prévia).
A maioria dos TEAEs foi de intensidade leve a moderada. Os mais prevalentes foram fadiga (44,0% vs. 52,0%), tontura (36,0% vs. 28,0%) e dispneia (16,0% vs. 24,0%).
Eventos de interesse especial incluíram:
- Grupo HCQ + PDN: 3 distúrbios de condução (12,0%), 2 prolongamentos de QT (8,0%), 1 lesão hepática aguda (4,0%), 3 infecções (12,0%), 3 alterações visuais (12,0%), 2 alergias (8,0%).
- Grupo PDN isolada: 4 distúrbios de condução (16,0%), 2 prolongamentos de QT (8,0%), 2 lesões hepáticas agudas (8,0%), 3 infecções (12,0%), 2 alterações visuais (8,0%), 4 alergias (16,0%).
Desfechos exploratórios
A tecnologia Olink foi utilizada para quantificar proteínas circulantes relacionadas à inflamação durante o tratamento. 92 proteínas plasmáticas foram quantificadas, das quais 37 mostraram alterações em relação aos controles, incluindo interleucinas, quimiocinas, fatores de crescimento transformadores e TNFs. Após 12 meses de tratamento com HCQ + PDN, 16 proteínas plasmáticas reduziram-se a níveis semelhantes aos dos controles saudáveis. No grupo PDN isolada, apenas 2 proteínas (OSM e TGF-alfa) apresentaram redução significativa.
Discussão: Papel da hidroxicloroquina na cardiopatia inflamatória crônica
Em comparação ao grupo de monoterapia com PDN, os desfechos cardiovasculares compostos — tempo até morte cardiovascular ou transplante cardíaco, hospitalização por insuficiência cardíaca ou recorrência de miocardite, e implante de marcapasso definitivo ou CDI —, bem como indicadores clínicos importantes melhoraram aos 12 meses no grupo que recebeu HCQ com significância estatística. Além disso, segundo os resultados de proteômica Olink, 16 proteínas inflamatórias plasmáticas em pacientes com inf-CMP crônica após FM diminuíram significativamente para níveis normais após 12 meses de tratamento com HCQ e PDN (apenas duas diminuíram no grupo de monoterapia com PDN). De modo semelhante, a incidência de eventos adversos foi comparável entre os grupos.
Este estudo apresenta várias limitações. Em primeiro lugar, o pequeno tamanho amostral de 50 pacientes pode limitar o poder estatístico das análises. Além disso, foi realizado apenas na China. Em segundo lugar, este estudo não foi duplo-cego, o que pode introduzir viés. Ademais, a significância estatística do desfecho primário composto foi impulsionada principalmente pela redução da recorrência de miocardite, ao passo que não foram observadas diferenças significativas entre os grupos para outros componentes do desfecho composto. Portanto, os resultados relacionados aos desfechos primários devem ser interpretados com cautela.
Conclusões
Nesse estudo, a terapia com HCQ combinada com PDN por 12 meses reduziu o desfecho cardiovascular composto — tempo até morte cardiovascular ou transplante cardíaco, hospitalização por insuficiência cardíaca, recorrência de miocardite, uso de marcapasso definitivo ou implante de CDI — em pacientes com inf-CMP crônica após FM, principalmente às custas de redução de recorrência de miocardite. Além disso, os pacientes que receberam hidroxicloroquina tiveram importante melhora da função ventricular e dos marcadores de inflamação, além da redução de diversas proteínas inflamatórias plasmáticas para níveis normais. Aguardarmos os resultados do ensaio clínico multicêntrico, randomizado, duplo-cego e controlado por placebo que está em andamento para confirmarmos esses resultados.
Autoria

Juliana Avelar
Médica formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Cardiologista pelo Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia
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