Caso clínico: Cherchez la femme
Caso clínico: Um paciente do sexo masculino com 40 anos é encaminhado para atendimento em clínica médica com diagnóstico de polimiosite.
Há mais de 10 anos, nos ambulatórios de Doenças do Colágeno na UFRJ, recebi um encaminhamento referente a um paciente com diagnóstico de polimiosite. O documento apontava para um homem de 40 anos com creatinofosfoquinase > 2000 U/L, já em uso de Prednisona 1mg/kg, porém sem melhora do quadro.
Fiquei curioso porque uma das características desta doença é a resposta ao uso de corticoide com ação sistêmica. Por que ele não estaria melhorando?
O atendimento
Chegou a sua vez e, indo até às cadeiras onde os pacientes estavam esperando, chamei por seu nome. Uma mulher ao seu lado, de olhos arregalados e atenta, virou-se e disse para um homem “Vamos!”. Ela se levantou alguns segundos antes dele e logo em seguida, apoiando as mãos nos joelhos, ele se levantou com certa dificuldade. Caminharam cerca de cinco metros até a minha sala e, inicialmente, não percebi nenhuma alteração grosseira de marcha (as miopatias inflamatórias têm uma marcha característica: a marcha anserina ou miopática, também conhecida, para os que gostam de epônimos, de marcha de Trendelenburg). O homem se sentou na cadeira que indiquei, com os cotovelos apoiados na minha mesa, e a esposa ao lado, um pouco mais recuada. Ela começou a falar enquanto ele se mantinha calado.
“Doutor, meu marido está com um problema nos músculos e o tratamento não está fazendo efeito…”.
Ela seguiu contando algumas impressões subjetivas sobre o quadro, com poucos elementos concretos. Mas certamente estava sendo importante, para ela, poder falar. E para um médico clínico, diante de uma pessoa que quer falar, é hora de doar os ouvidos. Clínica Médica se faz com os ouvidos. Aliás, isto é uma técnica. A técnica do discurso livre. Muito usada na psicanálise e descrita no livro de Semiologia do Professor Porto como uma ferramenta importante para que a relação médico paciente seja estabelecida com base na confiança.
Depois de alguns minutos, tive uma brecha para um questionário dirigido. Ela, mais tranquila, percebendo que não estávamos com pressa, e ele, ainda apático, me permitiram investigar os fatos.
Tratava-se de um homem de 40 anos, mecânico de automóveis, que há cerca de 3 meses começou a apresentar dificuldade para trabalhar. Ele disse que, ao se deitar debaixo do carro, não tinha mais a concentração necessária para desempenhar o seu trabalho habitual e que não tinha mais força para “apertar as roscas e parafusos”. Disse que, por causa disso, começou a ficar deprimido e que o chefe sugeriu 15 dias de férias. Nesses 15 dias a esposa relatou que ele preferiu ficar deitado na cama, descansando, e que chegaram a conclusão que era o tal do burnout. Mas ele piorou.
Neste período, chorava com facilidade e dizia que não tinha vontade de voltar ao trabalho. Foi a um psiquiatra que iniciou um tratamento com Sertralina 25mg, com uma melhora discreta, segundo ela, mas com ganho de peso e constipação. Dias depois, o paciente foi a um médico clínico que suspeitou de uma miopatia, confirmada pela elevação de CPK. Foi prescrito o diagnóstico de polimiosite e iniciado o tratamento com corticoide. Sem melhora alguma.
Importante dizer que ele pouco falava durante a consulta. Uma fisionomia realmente entristecida e uma lentidão para as respostas, o que nitidamente incomodava a esposa. E ela dizia “Viu, doutor, ele não tem ânimo nem para falar”.
Estranho é que a polimiosite é uma miopatia inflamatória rara e que cursa basicamente com queixas musculares, de fraqueza proximal. São pacientes que ao longo de semanas apresentam dificuldade de realizar atividades que dependam das cinturas (Levantar os braços para pegar um livro na estante ou um roupa do varal, ou dificuldade para se levantar de uma cadeira ou mesmo do chão), mas que, de fato, respondem bem ao corticoide.
Por que um quadro de Polimiosite que, além de não responder ao corticoide, apresentava-se com tantas alterações comportamentais? Claro que uma doença inflamatória pode comprometer o estado geral e que uma depressão associada pode estar presente, assim como precisaríamos entender melhor como o remédio estava sendo usado, mas, agora, vamos ao exame físico.
Vi um homem acima do peso, corado, hidratado e sem nenhuma alteração gritante à ectoscopia. Sinais vitais normais. Exame neurológico com uma fraqueza proximal moderada e retardo no relaxamento do reflexo Aquileu, bilateralmente.
Os exames mostraram uma CPK nos níveis já descritos, com proteína C reativa normal, funções renal e hepática normal, e eletrólitos normais.
Que caso estranho.
Diante de casos assim, nós médicos, sempre lembramos do Dr. House o do próprio Sherlock Holmes, pois um trabalho semelhante ao de um detetive se impõe diante das incoerências percebidas e sem uma causa evidente.
Mas para ilustrar o caso, vou citar Alexandre Dumas, que escreveu Os Três Mosqueteiros e O Conde Monte Cristo, ao invés de citar Holmes ou House. Em um livro chamado Os Moicanos de Paris, o autor usa, pela primeira vez, a expressão francesa “Cherchez la femme”, cuja tradução literal é procure a mulher. O detetive diante de um crime aparentemente sem autoria, diz, ao estilo clássico do “Elementar, meu caro Watson”, do Holmes, ou do It’s not Lupus, do House, Cherchez la femme, e então encontra uma culpada e soluciona o mistério.
E quem seria a culpada no caso do meu paciente?
Vamos às pistas! Em um homem com alteração de comportamento, elevação de CPK, obesidade e retardo no relaxamento do reflexo Aquileu… Cherchez la femme! Em casos de doenças difíceis com apresentação atípica, realmente nós não podemos deixar de pensar nela.
TSH > 300 mUI/L .
Iniciamos a reposição de levotiroxina e o paciente voltou, em semanas, a trabalhar e a viver, livre do corticoide e da sertralina.
Uma apresentação de miopatia associada ao hipotireoidismo.
A culpa era da tireoide.
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