Cistos pancreáticos
No início do século XX acreditava-se que os cistos pancreáticos eram raros e de significado clínico incerto. O advento dos exames seccionais de imagem, contudo, trouxe luz a uma prevalência populacional crescente de até 15%, atribuível à maior disponibilidade dos métodos diagnósticos e ao envelhecimento populacional.
Epidemiologia dos cistos pancreáticos
A maioria dos cistos pancreáticos é benigna, com risco geral de progressão para malignidade de 1,5%. Entretanto, há aqueles com potencial pré-maligno e, de fato, estima-se que um entre seis adenocarcinomas pancreáticos tenha origem em cistos mucinosos.
- Os dois benignos mais comuns: pseudocistos pancreáticos e cistoadenomas serosos (até 25% dos casos);
- Os dois pré-malignos mais comuns: neoplasia mucinosa papilar intraductal (IPMN) e neoplasia cística mucinosa (MCN), responsáveis por metade dos cistos pancreáticos incidentais;
- Os dois pré-malignos menos comuns: neoplasia pseudopapilar sólida e tumores neuroendócrinos císticos pancreáticos.
As principais lesões císticas benignas
O pseudocisto pancreático se instala na sequência de episódios de pancreatite aguda ou crônica, sendo unilocular, único ou múltiplo, frequentemente com debris em seu interior e geralmente conectado ao ducto pancreático principal, embora essa comunicação nem sempre seja identificável à imagem. O potencial maligno é nulo e a resolução espontânea é a evolução mais esperada.
Deve-se ter muita cautela com esse diagnóstico na ausência de histórico de pancreatite ou quando o cisto é identificado na fase aguda do primeiro evento, situação em que pode ter sido a causa, e não a consequência, provavelmente não se tratando de um pseudocisto e exigindo a busca por diagnósticos diferenciais.
O cistoadenoma seroso predomina em mulheres, que respondem por 60% dos casos, sendo a sua ocorrência mais frequente entre a 5ª e 7ª décadas de vida. A maioria é assintomática e o crescimento é lento. Quando volumosos, porém, podem justificar dor abdominal, pancreatite e obstrução de vias biliares. A aparência pode ser microcítica (favo de mel) ou oligocística, a cicatriz central é patognomônica (mas presente em não mais que um terço dos pacientes) e não há comunicação com o duplo pancreático principal. O potencial maligno é nulo.
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As principais lesões císticas pré-malignas
O IPMN, principal tipo de lesão cística pancreática mucinosa, se distribui igualmente entre os sexos, ocorre geralmente entre a 5ª e 7ª décadas de vida, sendo a maioria assintomática. Entretanto, a hiperviscosidade promovida pela mucina pode gerar obstrução e precipitar episódios de pancreatite aguda. A origem se dá nas células ductais, e a regra é a presença de comunicação com os ductos pancreáticos, seja o principal (frequentemente dilatado), secundários ou ambos (mistos), podendo ser únicos ou múltiplos.
O sinal endoscópico clássico é a papila duodenal em boca de peixe, bojuda e com extrusão de mucina. Os IPMNs de ductos secundários tendem a se distribuir no formato de cachos de uvas e a doença tende a ser multifocal. O potencial maligno pode alcançar 38% no IPMN de ducto secundário e 85% no IPMN de ducto principal, embora os dados mais recentes tenham mostrado que o risco pode ser menor, em parte por conta do viés das séries de casos cirúrgicos.
A neoplasia cística mucinosa, bem menos comum do que o IPMN, é praticamente exclusiva das mulheres, que perfazem 90% dos casos. A ocorrência típica é entre os 40 e 60 anos de vida, sendo a maioria assintomática. A localização prioritária é na cauda pancreática, com aspecto uni ou oligolocular. O conteúdo é constituído por estroma ovariano e não há comunicação com os ductos pancreáticos. A parede do cisto geralmente é espessada e as calcificações em casca de ovo, características, podem ocorrer em um quarto dos casos. O risco de malignização chega aos 34%.
A neoplasia pseudopapilar sólida (tumor de Frantz) ocorre quase que exclusivamente em mulheres, que perfazem 90% dos casos. A ocorrência prioritária é na 2ª e 3ª décadas de vida, sendo a maioria assintomática. A aparência é bem demarcada, heterogênea (com componentes sólidos e císticos) e, em alguns casos, contam com calcificações irregulares. O risco é de malignização de 15%.
Por fim, os tumores neuroendócrinos pancreáticos tem acometimento variável de idade e sexo. A maioria é assintomática e 10% são funcionais e associados à neoplasia endócrina múltipla do tipo 1 (NEM1). O aspecto típico da imagem é a parede espessada e captante do contraste, sendo o aspecto cístico derivado da degeneração do tumor. Como a maioria expressa receptores de somatostatina, costumeiramente são detectados ao Octreoscan. O risco de malignização é de 10%, de forma que o prognóstico tende a ser pior em lesões ≥ 2 cm e com índice de Ki-67 ≥ 3%, alto grau histológico e invasão linfovascular.
Abordagem
A categorização do risco dos cistos pancreáticos (ausente, baixo, intermediário ou alto) é realizada por meio de dados demográficos e exames de imagem (suficientes para a adequada classificação em 80% dos casos), reservando-se a ecoendoscopia (ECO-EDA) e punção aspirativa com agulha fina (PAAF) para os casos duvidosos.
O estabelecimento do tipo de cisto, sobre o que foi discorrido acima, é a etapa inicial mais importante.
A avaliação deve contemplar também os fatores de risco para câncer pancreático, como história familiar e presença de mutações germinativas patogênicas.
- Inequivocadamente benignos: os cistoadenomas serosos e pseudocistos dispensam avaliação subsequente quanto ao risco de transformação maligna, de forma que a preocupação surge exclusivamente diante de sintomas locais compressivos.
- Baixo risco: o risco evolutivo é nulo ou muito baixo, como é o caso dos pequenos cistos mucinosos e IPMNs exclusivamente de ductos secundários. Os pacientes tipicamente são assintomáticos e a conduta habitual é o seguimento imaginológico com tomografia computadorizada (TC) ou ressonância magnética (RM, incluindo colangio-RM), semestral no primeiro ano e, daí em diante, a cada 12 meses, podendo o intervalo ser ampliado em caso de estabilidade da lesão (crescimento < 20% ou < 2,5 mm/ano). Recomenda-se ainda a dosagem seriada de HBa1C e CA 19-9.
- Risco intermediário: são cistos com risco evolutivo atual baixo, mas com potencial moderado de transformação maligna no futuro. Exigem, portanto, avaliação refinada, idealmente com o emprego da ECO-EDA, que traz dados radiológicos adicionais e permite a aspiração do conteúdo do cisto para a análise citológica e molecular. As características preocupantes incluem histórico de pancreatite, dor, emagrecimento e aumento de CA 19-9 e hemoglobina glicada (diabetes de início recente), bem como alterações genômicas de alto risco no fluido aspirado.
- Alto risco: demandam a discussão por equipe multidisciplinar quanto a indicação e viabilidade da ressecção cirúrgica em decorrência do risco de displasia de alto grau ou câncer invasivo.
Estigmas de alto risco para câncer pancreático Valor preditivo positivo para neoplasia avançada varia entre 60 e 90%. |
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Cistos preocupantes (risco intermediário) |
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O papel da ECO-EDA
Os métodos de imagem tradicionais para a avaliação das lesões císticas pancreáticas são os seccionais: TC e RM de abdome.
A ECO-EDA auxilia na estratificação adicional de risco na categoria intermediária, podendo afirmar a natureza benigna ou de baixo risco, ou apontar para características de alto risco.
Quais são as suas principais vantagens:
- Acurácia discretamente maior do que a RM para identificar a comunicação ductal;
- Maior sensibilidade para a detecção de nódulos murais;
- Oportunidade de identificação do achado patognomônico de IPMN da papila duodenal em boca de peixe;
- Viabilizar a PAAF do conteúdo cístico.
Como interpretar os achados laboratoriais?
- Amilase elevada sugere comunicação ductal, como nos pseudocistos e IPMNs;
- CEA > 192 ng/mL está presente em três quartos dos cistos mucinosos, e valores muito baixo os tornam improváveis;
- Glicose < 50 a 80 mg/dL tem acurácia de aproximadamente 90% para a distinguir os cistos mucinosos dos não mucinosos.
Como interpretar as mutações do DNA?
- VHL é quase 100% específica para cistoadenoma seroso;
- KRAS tem especificidade > 95% para os cistos mucinosos;
- GNAS é específica dos IPMNs;
- CTNNB1 é altamente específica para tumores pseudopapilares sólidos;
- MEN1 tem alta especificidade para neoplasias endócrinas pancreáticas císticas;
- As anormalidades genéticas em oncogenes e supressores tumorais são mais comuns nas displasias de alto grau e malignidades.
Conclusão e mensagem prática
- O maior desafio no manejo dos cistos pancreáticos é identificar aqueles com maior risco de progressão para malignidade, oportunizando a prevenção e detecção precoce do câncer de pâncreas por meio da única medida curativa disponível: a ressecção cirúrgica. Entretanto, faz-se necessário manter o equilíbrio, evitando a morbimortalidade operatória e os impactos emocionais e financeiros para a maioria das lesões císticas pancreáticas, predominantemente benignas e com baixo potencial evolutivo. Deve-se levar em conta ainda o status performance, expectativa de vida e as preferências do paciente.
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