Você já ouviu falar nos estudos N-de-1?
Os dados de ensaios N-of-1 podem ser opções de tratamento com os pacientes através do processo de tomada de decisão compartilhada.
As fontes de informação científica, numa perspectiva simplista e prática, se dividem em estudos clínicos individuais, revisões sistemáticas e as diretrizes clínicas (“guidelines”).
Os estudos clínicos individuais na grande maioria das vezes se enquadram em um dos quatro seguintes desenhos metodológicos:
- estudos randomizados;
- estudos de coorte;
- estudos transversais ou seccionais;
- estudos caso-controle.
Esses em geral envolvem um número grande de participantes, numa tentativa de aumentar a precisão dos seus resultados.
Uma das questões importantes, independente do modelo ou tipo de estudo, é determinar o quanto este é mais ou menos aplicável à tomada de decisão com os nossos pacientes individuais. Nesse sentido, quanto mais semelhante com o nosso paciente for a amostra populacional incluída no estudo (e portanto mais representativa), maior será a aplicabilidade da informação gerada a partir dos resultados do estudo.
Por exemplo, imagine um estudo que avaliou um novo medicamento para tratar determinada doença em pacientes idosos, portadores de cardiopatia e diabetes. Provavelmente, os achados desse estudo serão pouco aplicáveis ao cuidado de um paciente jovem com a determinada doença porém sem outras comorbidades. Isso é algo que tem relação direta com os critérios de inclusão e de exclusão dos estudos. Os ditos estudos pragmáticos tendem a incluir participantes atendidos no dia-a-dia, sem restrições rígida em termos de inclusão ou exclusão, e nesse sentido são muito representativos, pois a população estudada é a mesma que recebe a intervenção avaliada no estudo.
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Qual seria então o cúmulo da aplicabilidade/representatividade?
A resposta está em um modelo de estudo não muito “famoso”, no qual a população do estudo se resume ao próprio paciente individual, chamado de N-de-1. Tais estudos representam o menor tamanho de amostra possível em pesquisa clínica e podem produzir resultados que contribuem para uma abordagem mais personalizada aos cuidados de saúde. Eles geram evidências úteis quando os dados de ensaios randomizados e controlados com um grande número de participantes são inconclusivos ou mesmo inexistentes.
Esses estudos surgiram em 1953, mas levaram três décadas antes de serem aceitos. Ao longo dos anos, muitos estudos N-de-1 não foram finalizados devido à falta de financiamento, mas mesmo assim, vários foram publicados na literatura. Uma revisão sistemática da literatura de 2013 relatando identificou 108 publicações avaliando a aplicação de ensaios N-de-1 para diversas condições clínicas em 2.154 indivíduos; A mesma sugere que os ensaios N-de-1 têm o potencial de ampla aceitação por pacientes e médicos como uma modalidade eficaz para aumentar a precisão terapêutica.
Características dos estudos N-de-1
Na prática os estudos N-de-1 envolvem um único paciente que participa de vários ensaios alternados, onde ao longo do tempo é submetido a diferentes intervenções. Pode ser um tratamento ativo alternado com um placebo ou mesmo diferentes tratamentos ativos.
Assim como nos grandes ensaios clínicos, os estudos N-de-1 podem e devem ter características que minimizem o risco de viés tais como randomização (alocação para cada intervenção de forma aleatória), cegamento (nem o médico pesquisador nem o paciente sabem ao certo qual intervenção está sendo aplicada), avaliação e mensuração sistemática de resultados, dentre outras características.
Em termos pragmáticos, os ensaios N-of-1 podem ajudar na seleção do tratamento mais custo-efetivo. Como esses ensaios fornecem evidências objetivas da resposta de um paciente individual, a opção mais barata pode ser escolhida. Isso pode ser útil para decidir entre dois tratamentos igualmente eficazes, uma formulação genérica versus uma de marca ou diferentes classes de medicamentos.
Benefícios dos estudos N-de-1
Mais recentemente, o interesse em ensaios N-de-1 aumentou muito. Esse fato coincide com uma mudança de agenda voltada para “cuidados centrados no paciente” e ainda a “medicina personalizada. Isso ocorre justamente devido ao fato de que ao contrário de um estudo randomizado e controlado “padrão ouro”, os estudos N-de-1 oferecem dados sobre a melhora de problemas de saúde e melhorias no bem-estar que ocorrem no nível individual do paciente.
Os ensaios N-de-1 permitem testar novos tratamentos para avaliar o impacto no nível individual, bem como comparar diferentes dosagens/combinações para otimizar o regime terapeutico. Eles também podem ajudar a indicar quando interromper tratamentos ineficazes. Esses estudos ajudam em ambientes onde há uma escassez de evidências empíricas abrangentes.
Médicos podem aproveitar os dados de ensaios N-de-1 para informar as discussões sobre as opções de tratamento com os pacientes através do processo de tomada de decisão compartilhada.
Outro exemplo em que os ensaios N-de-1 podem ser úteis é no caso de doenças raras. Muitas vezes, não é possível realizar um estudo randomizado e controlado para uma doença rara devido ao pequeno número de pacientes envolvidos e à ampla heterogeneidade clínica e genética da doença.
O crescente reconhecimento da ampla aplicabilidade de ensaios N-de-1 para diversas disciplinas da saúde e o valor que eles podem trazer para a pesquisa e prática clínica, por meio do foco na compreensão dos indivíduos, fazem desse modelo de estudo uma opção promissora, porém ainda pouco explorada.
Uma revisão sistemática mais recente de 2022, avaliando os resultados de desfechos clínicos em pacientes submetidos a um estudo N-de-1 em comparação com aqueles que receberam cuidados habituais para diferentes doenças identificou 12 estudos randomizados. As principais condições clínicas incluíam a dor crônica, osteoartrite, doença pulmonar obstrutiva crônica, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, hiperlipidemia, fibrilação atrial, intolerância a estatinas e hipertensão. Foi observado em um estudo um benefício estatisticamente significativo no resultado do desfecho primário. Apenas um atingiu a meta de tamanho de amostra pré-especificada. Os resultados de desfechos secundários mostraram benefícios modestos, incluindo a diminuição do uso de medicamentos, redução do número de episódios de fibrilação atrial e uma maior satisfação do paciente.
Limitações dos estudos N-de-1
As indicações para ensaios N-de-1 são limitadas a contextos onde haja incerteza substancial em relação à eficácia comparativa de diferentes tratamentos. Essa incerteza pode resultar de uma escassez de evidências – ou de resultados conflitantes – de estudos randomizados e controlados, quando a evidência possui relevância limitada para o paciente específico que precisa de um determinado tratamento.
Logo, esses estudos não são apropriados para condições agudas ou que podem progredir rapidamente para desfechos indesejáveis. Também não são aplicáveis a condições assintomáticas, a menos que haja um marcador objetivo avaliado como desfecho (por exemplo, valor da pressão arterial ou um resultado de exame laboratorial. Os ensaios N-de-1 são mais úteis no contexto de uma doença crônica e estável, bem como em condições cuja patologia progride lentamente.
Os tratamentos usados em ensaios N-de-1 devem ter início e eliminação rápidos. Se os tratamentos forem longos (por exemplo, imunossupressores para uma condição auto-imune), o paciente e o médico podem considerá-los indesejáveis para dar seguimento no estudoco. Além disso, se os efeitos do agente persistem, com o período de “washout” também muito longo, pode haver um indesejável prolongando do estudo. Ainda, intervenções com padrões de dosagem e titulação complexos são candidatos ruins para ensaios N-de-1.
Como relatar um estudo N-de-1?
A melhoria no relato e clareza de métodos e achados em estudos N-de-1 é essencial para que o médico possa avaliar a sua validade e replicar resultados bem-sucedidos. Uma extensão CONSORT para ensaios N-de-1 (CENT 2015) fornece orientação sobre o adequado relato de ensaios individuais e séries de ensaios N-de-1. O CENT fornece orientação adicional para 14 dos 25 itens da lista de verificação CONSORT 2010 e recomenda um diagrama para representar um ensaio N-de-1 individual e modifica o diagrama de fluxo CONSORT para abordar o fluxo de uma série de ensaios N-de-1.
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Conclusão
Maior nem sempre é melhor – pelo menos quando se trata da utilidade dos resultados da pesquisa clínica. Pesquisadores médicos e clínicos tendem a acreditar que quanto maior o tamanho da amostra – e quanto mais poderoso o estudo – mais confiáveis serão os resultados.
Em ensaios N-of-1, o paciente normalmente é alternado entre um tratamento ativo e placebo ou entre tratamentos ativos.
As indicações para ensaios N-of-1 incluem doenças crônicas, doenças raras e a otimização de regimes de medicamentos para pacientes individuais.
Ao tornarmos a prática mais próxima da pesquisa clínica criamos oportunidades para desenvolver a base de evidências clínicas, aprimorando a coleta sistemática de dados sobre a eficácia comparativa de tratamentos por profissionais de saúde reais que tratam pacientes reais. A partir de uma maior popularização e integração dos ensaios N-of-1 na prática, os médicos podem se envolver cada vez mais na pesquisa clínica e na geração de evidências para informar suas próprias decisões. Além disso, os pacientes poderiam se familiarizar melhor com o método científico e mais bem informados. Assim, um único estudo N-de-1 pode ser visto como uma melhoria do conhecimento construído e baseado em evidências prévias para um melhor cuidado de cada paciente individual.
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