Cuidado paliativo na cirrose descompensada: como ajudar seu paciente?
Recentemente, a AASLD publicou uma diretriz sobre o cuidado paliativo em pacientes com cirrose descompensada.
Cuidados paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar especializada, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares/cuidadores, diante de uma doença grave que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, identificação precoce e tratamento de sintomas físicos, espirituais e psicossociais. A cirrose hepática é uma doença associada à importante redução na qualidade de vida e, geralmente, evolui com piora progressiva dos sintomas e número de internações. Pacientes com cirrose descompensada apresentam mortalidade em 5 anos de 20-80%, sendo que aqueles com Meld > 21 e Child > 12, na maioria das vezes, têm menos de 6 meses de vida. No entanto, somente 11% dos pacientes cirróticos recebem algum cuidado paliativo ao longo da vida, comumente apenas em estágio muito avançado da doença. Recentemente, a American Association for the Study of Liver Diseases (AASLD) publicou uma importante diretriz sobre o cuidado paliativo em pacientes com cirrose hepática descompensada. Grande parte das evidências são baseadas em opiniões de especialistas, dada a carência de estudos nesse tema, mas são extremamente válidas.
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Os principais tópicos são sumarizados abaixo:
1 – Cuidado paliativo não impede a realização de tratamentos específicos direcionados a doença hepática em si e pode ser fornecido a pacientes com cirrose descompensada em qualquer estágio de sua doença. A avaliação e listagem em fila de transplante hepático não deve impedir o fornecimento de cuidados paliativos, o qual pode ser instituído pelo próprio hepatologista.
2- O planejamento avançado do cuidado deve ser instituído após o diagnóstico de cirrose, preferencialmente antes da descompensação hepática e perda da capacidade de decisão.
3- A situação financeira, psicossocial e espiritual deve sempre ser avaliada. No Brasil, pacientes portadores de hepatopatia grave se beneficiam de isenção do imposto de renda, por exemplo.
4- A presença e gravidade dos sintomas deve ser avaliada criteriosamente, priorizando sempre aqueles com maior repercussão para o paciente. São sintomas frequentes no paciente com cirrose descompensada: dor (30-79%), dispneia (20-88%), câimbras (56-68%), distúrbios do sono (26-77%), depressão (4,5-64%), ansiedade (14-45%), fadiga (50-86%) e disfunção sexual (53-93%).
5- Dor: A etiologia da dor em pacientes com cirrose pode ser dividida em mecânica relacionada ao fígado (esplenomegalia, ascite, distensão de cápsula hepática, etc), inflamatória e não relacionada ao fígado (principalmente, neuropática ou musculoesquelética). O primeiro passo no manejo da dor é identificar e tratar causas reversíveis. A abordagem deve ser multimodal, centrada na pessoa, incluindo medidas não farmacológicas, como fisioterapia, acupuntura, calor/frio e meditação. Dores localizadas devem ser tratadas preferencialmente com terapia local (injeções específicas; cremes/spray – AINES, capsaicina; patches – lidocaína). Anti-inflamatórios não esteroidais sistêmicos não devem ser utilizados em pacientes cirróticos. Paracetamol (até dose máxima de 2 g/dia) é seguro e constitui a primeira linha sistêmica de tratamento da dor na cirrose. Opióides devem ser evitados em pacientes cirróticos. Quando necessários, deve-se atentar a diversas recomendações de segurança, incluindo redução de dose e aumento de intervalo entre as mesmas. Dores agudas, com menos de 12 semanas de evolução, são mais responsivas a opióides, que dores crônicas. Deve-se preferir hidromorfona na dose inicial de 1mg VO 6/6 horas, ou oxicodona 2,5 mg VO a cada 6-8 horas. Fentanil em patch transdérmico não deve ser utilizado em cirróticos com sarcopenia/caquexia e requer estrita vigilância nos demais pacientes, uma vez que sua dose mínima é considerada elevada para um paciente cirrótico. Tramadol deve ser evitado devido a farmacocinética imprevisível e risco de hipoglicemia. Para dor neuropática, pode-se utilizar com cautela gabapentina (300mg/dia ou menos) ou pregabalina (50 mg BID ou menos) em baixas doses. Antidepressivos tricíclicos são contraindicados.
6- Ascite: Pacientes com ascite refratária devem ser avaliados para TIPS. Pacientes com contraindicações a TIPS, como encefalopatia, doenças cardíacas ou MELD muito elevado, são candidatos a colocação de cateter peritoneal ou bombas automáticas (alfapump) para drenagem da ascite, embora mais estudos sejam necessários. Nesses casos, deve-se iniciar profilaxia antimicrobiana para peritonite bacteriana espontânea.
7- Dispneia: Inicialmente, deve-se identificar e tratar as causas associadas a dispneia, o que inclui otimização de diuréticos, broncodilatadores, realização de paracentese, toracocentese e TIPS. Medidas não farmacológicas paliativas como colocação de ventiladores a beira-leito, fornecimento de oxigênio complementar (mesmo na ausência de hipoxemia) e medidas de relaxamento (meditação, mindfulness) devem ser instituídas. O uso de opioides e benzodiazepínicos deve ser ponderado frente aos riscos de encefalopatia e intoxicação. Caso seja necessário, deve-se optar por hidromorfona (iniciar com 0,2 mg EV a cada 3 horas, titulando até controle do sintoma) ou oxicodona, ao invés de morfina.
8- Encefalopatia hepática: Inicialmente, deve-se avaliar causas e precipitantes reversíveis. Lactulose e rifaximina constituem a terapia padrão. No entanto, pacientes e cuidadores podem optar por utilizar polietilenoglicol ou até mesmo descontinuar o tratamento na presença de efeitos colaterais como dor abdominal, distensão abdominal gasosa e diarreia, associados a lactulose. Na presença de restrições financeiras e encefalopatia refratária, metronidazol ou neomicina podem ser utilizados em substituição a rifaximina. Terapias complementares, como suplementação de zinco, BCAA, probióticos e carnitina podem ser oferecidos como adjuvantes.
9- Câimbras: As câimbras em pacientes cirróticos geralmente são espontâneas, intermitentes e noturnas, sendo associadas a grande prejuízo da qualidade de vida. Recomenda-se correção de distúrbios hidroeletrolíticos, como hipocalemia, hipomagnesemia e deficiência de zinco. Suplementação de taurina (2-3 g/dia), vitamina E (200 mg TID) ou baclofeno (5-10 mg TID) podem ser tentados. Baclofeno, se iniciado, deve ser prescrito inicialmente na dose de 10 mg a noite, com aumento semanal até o máximo de 30 mg/dia.
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10- Distúrbios do sono: Diversos fatores, como uso de medicações (especialmente diuréticos a noite), presença de sinais de encefalopatia hepática, apneia do sono, síndrome das pernas inquietas e prurido, podem impactar o sono do paciente cirrótico e devem ser avaliados. Terapias baseadas em mindfulness e cognitivo-comportamental podem ser tentadas. O uso por curto prazo de melatonina 3 mg ou hidroxizine 25 mg a noite pode melhorar a qualidade do sono de pacientes cirróticos Child A ou B. Benzodiazepínicos, de uma maneira geral, devem ser evitados, mas podem ser utilizados em pacientes ansiosos em final de vida. Zolpidem 5 mg a noite pode ser empregado em pacientes compensados com cirrose Child A ou B, mas deve ser evitado em indivíduos descompensados devido ao risco de encefalopatia e redução do clearance hepático.
11- Fadiga: A fadiga, tanto central como periférica, é um dos sintomas mais frequentes e debilitantes do paciente cirrótico, com prevalência de 50-86%. Sua avaliação deve incluir a pesquisa de fatores contribuintes como hipotireoidismo, depressão, insuficiência adrenal, anemia, deficiência de vitaminas e efeito colateral de medicamentos (como betabloqueadores). Diversos estudos em pacientes cirróticos Child A ou B demonstraram que a prática de atividade física pode reduzir a fadiga. Não existem dados que corroborem o uso de estimulantes, como modafinila ou metilfenidato, na cirrose.
12- Prurido: O prurido é um sintoma comum em pacientes portadores de cirrose independentemente da etiologia, embora seja mais acentuado nas doenças colestáticas. Tratamento inicial deve incluir cremes hidratantes, umidificação do ar, evitar banhos quentes, sabonetes detergentes e coçar a pele. Anti-histamínicos tem efeitos sedativos, podem exacerbar encefalopatia e, geralmente, não são eficazes no prurido colestático. No entanto, podem ser úteis na presença de distúrbios do sono associados a coceira ou na presença de urticária. No prurido relacionado a colestase, pode-se utilizar colestiramina (4-16 g/dia), rifampicina (150-300 mg 2x por dia), naltrexona (iniciar com 12,5 mg/dia e progredir a cada 3-7 dias até 50mg/dia, se necessário) e/ou sertralina (iniciar com 25 mg e progredir lentamente até 75-100 mg/dia, se tolerado). A colestiramina constitui a terapia de primeira linha para pacientes descompensados e não deve ser administrada conjuntamente com outras medicações devido ao seu efeito quelante. A rifampicina não deve ser utilizada em pacientes com bilirrubina > 2,5 mg/dL e pode causar hepatoxicidade, especialmente no longo prazo, sendo pouco empregada em pacientes descompensados. Naltrexona não deve ser prescrita para pacientes em uso de opioides e também pode causar hepatotoxicidade, embora seja raro.
13- Disfunção sexual: A disfunção sexual é um dos sintomas menos avaliados pelos médicos, principalmente devido a estigmas culturais. O tratamento da disfunção sexual inclui medidas farmacológicas e não farmacológicas. Algumas medicações, como betabloqueadores, e substâncias, como álcool e tabaco, podem causar disfunção sexual e devem ser suspensas, se possível. Depressão e diabetes devem ser controladas. Tadalafila 10 mg/dia pode ser uma opção em pacientes selecionados, sendo demonstrada segurança em estudo com 4 semanas de duração que incluiu homens cirróticos com MELD 13 ± 4.
14- Depressão e ansiedade: Depressão e ansiedade são bastante frequentes em pacientes cirróticos, sendo observado aumento do risco de suicídio nessa população. Deve-se investigar fatores contribuintes, como distúrbios do sono, encefalopatia e deficiências vitamínicas (vitamina B12, ferro, ácido fólico). Inibidores seletivos da recaptação de serotonina não considerados seguros e eficazes. Sugere-se acompanhamento psiquiátrico especializado.
15- Náusea e vômito: Náusea pode ser relatada por até metade dos pacientes cirróticos e se correlaciona a diversos fatores como: medicações (lactulose, opioides), insuficiência adrenal, distúrbios hidroeletrolíticos, uremia, gastroparesia, ascite restritiva, refluxo e constipação. Medidas não farmacológicas devem ser instituídas, como evitar cheiro forte, remoção de medicações precipitantes, tratamento de causa fisiológica de base, acupuntura e técnicas de relaxamento. A primeira linha de farmacológica pode incluir um bloqueador H2 ou inibidor de bomba de prótons para tratamento de náusea associada a refluxo. Ondansetrona pode ser empregada na dose de até 8 mg/dia. Nesse caso, deve-se monitorar o intervalo QTc. Metoclopramida deve ter sua dose reduzida em 50% em pacientes com disfunção hepática e pode se associar a efeitos extrapiramidais.
16- Cuidados de fim de vida: O cuidado de pacientes em fim de vida deve ser individualizado de acordo com as preferências do paciente e sua família. As equipes de saúde devem educar as famílias quanto ao prognóstico da doença e suas complicações e ajudá-las a desenvolver planos para abordagem de infecções, encefalopatia e hemorragia, as quais são as principais causas de morte relacionadas ao fígado. Os cuidados de fim de vida devem priorizar o conforto, analgesia e o cuidado compassivo. Dessa maneira, medicações habitualmente contraindicadas podem ser utilizadas nesse cenário, como benzodiazepínicos e opioides.
Conclusão
Essa diretriz, através de uma abordagem interdisciplinar de avaliação das necessidades clínicas e psicossociais dos pacientes com cirrose hepática descompensada, conclama os profissionais de saúde a voltarem seus olhos para os benefícios dos cuidados paliativos nessa população. Diretriz de leitura obrigatória para clínicos, gastroenterologistas, hepatologistas e paliativistas.
Referências bibliográficas:
- Rogal S, et el. AASLD Practice Guidance: Palliative care and symptom based management in decompensated cirrhosis. Hepatology. 2022. Ahead of print. 93p. doi: 10.1002/hep.32378
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