Crinecerfont: Nova opção no tratamento da hiperplasia adrenal congênita
A hiperplasia adrenal congênita (HAC) por deficiência da enzima 21-alfa-hidroxilase é um diagnóstico de suma importância e, devido ao risco de vida para neonatos com a condição, hoje a dosagem da 17-hidroxiprogesterona (17-OHP) é contemplada na triagem neonatal por meio do teste do pezinho, com o objetivo de detectar as formas perdedoras de sal e reduzir o risco de mortalidade neonatal.
A HAC é uma condição genética, autossômica recessiva, que acomete cerca de 1 a cada 10.000 nascidos vivos no estado de São Paulo. Cerca de 95% dos casos ocorrem devido à deficiência da enzima 21-hidroxilase. O nível de funcionamento da enzima pode ocorrer em níveis diferentes a depender do tipo de mutação, o que gera os três fenótipos diferentes que podem ocorrer na doença:
- Forma clássica;
- Perdedora de sal (< 2% de atividade enzimática);
- Virilizante simples (3-7% de atividade enzimática);
- Forma não clássica (20-60% de atividade enzimática).
A forma clássica se manifesta logo na primeira infância, ao passo que a não clássica pode se manifestar em diversos momentos da vida, desde a infância, puberdade (com pubarca precoce, por exemplo), ou vida adulta (com um quadro indistinguível da Síndrome dos Ovários Policísticos — SOP — ou simplesmente como infertilidade).
Sintetizando de forma breve, a HAC é uma condição onde, devido à falta de atividade enzimática na cadeia da esteroidogênese, há menor produção (ou falta completa, no caso da forma perdedora de sal) de cortisol e em níveis variados de aldosterona. Essa falta leva a um feedback, que estimula a hipersecreção de CRH, que por sua vez estimula a produção de ACTH. O ACTH age novamente na adrenal, estimulando diversas enzimas da cascata. Porém como a 21-hidroxilase não funciona (ou funciona menos), os precursores acabam sendo desviados para a síntese de andrógenos adrenais, como a 17-OHP (marcador diagnóstico da condição), androstenediona e testosterona. Esse é o mecanismo pelo qual os portadores da condição enfrentam hiperandrogenismo e suas consequências, como virilização do sexo feminino e, em alguns casos, macrogenitossomia nos masculinos, aceleração da velocidade de crescimento, puberdade precoce e baixa estatura final.
Por sua vez, o tratamento atualmente preconizado pela Endocrine Society é o uso da hidrocortisona, um corticoide de curta duração (cerca de 5h) em 3 tomadas diárias. O objetivo do tratamento é a reposição do setor glicocorticoide e reduzir o feedback do ACTH, que acaba por hiperestimular as demais enzimas e leva ao acúmulo de precursores que por fim acaba sendo desviado para o setor andrógeno. Com a redução do ACTH, há redução da produção de 17 OHP, androstenediona e de testosterona, levando também ao tratamento do hiperandrogenismo.
O problema atual é que, por mais que faça sentido, infelizmente é necessário doses suprafisiológicas de glicocorticoides para o controle dos andrógenos, o que também é nocivo, pois ao longo prazo tais pacientes desenvolvem maiores taxas de obesidade, síndrome metabólica e o próprio uso do glicocorticoide também acaba gerando aceleração na idade óssea e perda de estatura final. O tratamento “perfeito” para a condição seria utilizar uma dose fisiológica de corticoides para a simples reposição do setor e a inibição do hiperandrogenismo. O objetivo no tratamento da HAC é manter níveis baixos de androstenediona e testosterona (que deixa de ser um parâmetro durante a puberdade em meninos)
Pelas consequências deletérias do uso de doses suprafisiológicas de corticoides, novas alternativas estão sendo estudadas com o intuito de promover sua redução. O crinecerfont é uma dessas substâncias. Trata-se de um antagonista do receptor de CRH (ou antagonista do receptor do fator liberador de corticotrofina tipo 1 – CRF1), o qual inibe a ligação do CRH, impedindo a clivagem da POMC e por consequência, reduzindo o ACTH e por fim seu hiperestímulo ao córtex adrenal, com objetivo de reduzir a produção androgênica. Após estudos curtos de fase 2, foi publicado recentemente no New England Journal of Medicine, em 2024, um estudo de fase 3 avaliando o seu impacto no tratamento da HAC em crianças.
O estudo
O “CAHtalyst Pediatric” foi um ensaio clínico randomizado, de fase 3, duplo cego, placebo controlado, multicêntrico (realizado nos EUA, Canadá e Europa), com duração de 48 semanas, que randomizou participantes entre uso de crinecerfont e placebo na proporção 2:1.
Os critérios de inclusão foram crianças com HAC entre 2 e 17 anos, com necessidade de doses totais de glicocorticoide maiores que o equivalente a 12 mg/m²/d (sendo prednisona ou prednisolona > 1 mg ou hidrocortisona > 4 mg), em doses estáveis pelo menos um mês antes da randomização e com níveis de androstenediona acima da metade superior do intervalo de referência e 17OHP > 2 vezes o limite superior da normalidade (LSN). Ou seja, foram incluídos pacientes com necessidade de doses suprafisiológicas (> 11 mg/m²/d) para manter o controle.
O objetivo primário do estudo foi avaliar a redução dos níveis de androstenediona após 4 semanas de uso do crinecefont. Dentre os desfechos secundários, também foi pré especificado a análise dos níveis de 17OHP nas primeiras 4 semanas.
Após o período inicial, entre 4 e 28 semanas, o objetivo (secundário) foi avaliar o impacto na redução da dose de glicocorticoide, objetivando manter sempre a androstenediona em níveis normais (permitindo um incremento do basal do paciente em até 120%). Outras análises exploratórias foram realizadas.
Ao final, foram randomizados 103 participantes e 97% completaram o trial.
Quanto à população do estudo, a média de idade foi de 12 anos, cerca de 51% do sexo masculino, com IMC médio de Z +1,2 (58% com IMC acima do P85 do CDC). 33% dos participantes masculinos tinham TART já na randomização. O nível inicial de androstenediona foi de 431 ng/dL (ou 4,31 ng/mL) e de 17-OHP foi de 8682 ng/dl (ou 86,82 ng/mL)
As doses utilizadas (via oral, 2x ao dia) do crinecerfont foram de acordo com o peso:
- 10-20 kg: 25 mg;
- 20-55 kg: 50 mg;
- ≥ 55 kg: 100 mg.
Crinecerfont foi eficaz em reduzir a androstenediona e a 17-OHP nas primeiras 4 semanas
O crinecerfont foi eficaz em reduzir a androstenediona nas primeiras 4 semanas, demonstrando sua capacidade em de fato controlar a hiperandrogenemia. A média de androstenediona inicial era de 405 ng/dL no grupo crinecerfont e 483 ng/dL no grupo placebo. Após 4 semanas, a dosagem de androstenediona foi a seguinte:
- Crinecerfont: 208 ng/dL (redução de -197 ng/dL);
- Placebo: 545 ng/dL (aumento de +71 ng/dL);
- Diferença média estimada: -268 ng/dL (favorecendo o grupo crinecerfont; p < 0,001).
Houve também uma redução importante dos níveis de 17-OHP, com uma diferença de 6421 ng/dL (64,21 ng/mL) favorecendo o grupo crinecerfont; p < 0,001.
O Crinecerfont também foi eficaz em reduzir a dose necessária de glicocorticoides
Ao final das 28 semanas, o crinecerfont também foi eficaz em reduzir a dose necessária de glicocorticoides. A dose média inicial era o equivalente a 16,4 mg/m²/dia. As doses utilizadas após o uso de crinecerfont foram as seguintes:
- Crinecerfont: 12,8 mg/m²/d (redução em 18%);
- Placebo: 17 mg/m²/d (aumento de 5,6%);
- Diferença média estimada: -23,5% (favorecendo o grupo crinecerfont; p < 0,001).
Cerca de 30% dos pacientes do grupo crinecerfont conseguiram obter reduções na dose de glicocorticoides para doses fisiológicas (< 11 mg/m²/d); 57% obtiveram reduções para doses fisiológicas ou maiores que 2,5 mg/m² na dose diária. No grupo placebo, houve necessidade de aumentar a dose de glicocorticoide, o que, na opinião dos autores, evidencia a falta de eficácia completa do tratamento atual.
Apesar dos efeitos apresentados, o estudo foi muito curto para analisar o impacto em desfechos como peso, crescimento e idade óssea. Tais desfechos clínicos deverão ser abordados em estudos de follow-up.
Segurança
Nenhuma morte foi registrada durante o estudo e houve mais efeitos adversos graves no grupo placebo (12) do que no grupo crinecerfont (1), não atribuídos à droga. Contudo, os principais eventos adversos observados foram cefaleia (25% vs. 6% no placebo) e pirexia (mas em incidência igual ao placebo, em torno de 23%).
Perspectivas
O crinecerfont demonstrou um potencial para o tratamento de HAC ao demonstrar sua capacidade em controlar níveis de androstenediona e 17-OHP, além de reduzir a dose diária de glicocorticoides. Essa medicação pode se tornar uma opção terapêutica para uma condição praticamente “órfã” de outros tratamentos, já que reduzir a dose de glicocorticoides para doses fisiológicas pode melhorar diversos desfechos como obesidade, diabetes, dislipidemia, risco cardiovascular e melhorar o desenvolvimento, promovendo ganho de estatura final.
Apesar do presente estudo não ter sido feito com esse objetivo, os dados apresentados geram expectativas sobre o impacto clínico que tal medicação pode ter em pacientes com HAC, que carecem de opções para tratamento atualmente.
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