Manejo das úlceras diabéticas
Talvez uma das complicações mais negligenciadas dentro do diabetes seja o manejo da neuropatia diabética periférica (NDP) e sobretudo a avaliação do pé. Apesar disso, a NDP é a complicação microvascular mais comum no diabetes. Sua prevalência chega a ser até 50% a depender da série de estudos e população analisada. Sua causa está ligada tanto à hiperglicemia crônica como a presença de outros fatores de risco, como o tempo de duração do diabetes, controle glicêmico, síndrome metabólica, obesidade, tabagismo, etilismo, idade (quanto mais avançada, maior o risco), polimorfismos genéticos e claro, a presença da doença arterial periférica (DAOP).
A Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), em seu guideline, recomenda o rastreio da condição em indivíduos com DM2 ao diagnóstico e com DM1 após 5 anos do diagnóstico, utilizando um teste que avalie fibras finas e um teste que avalie fibras grossas. O diagnóstico deve ser estabelecido através do Escore de Comprometimento Neuropático, além da exclusão de diversos diferenciais, tais como deficiência de B12, por exemplo, dentre outros.
É importante ressaltar que quando mencionamos a avaliação do pé diabético não estamos falando exatamente da mesma coisa, ainda que a presença da NDP seja praticamente obrigatória para a instalação da condição. Em primeiro lugar, a avaliação mínima do pé requer a análise da perda da sensibilidade protetora (PSP), utilizando-se o monofilamento de 10g. Quando este não estiver disponível, é possível realizar o Ipswich touch test, com acurácia semelhante. A PSP é um dos determinantes do pé de risco.
Além da análise da PSP, é fundamental avaliarmos o pulso, temperatura, presença de lesões tróficas, possíveis portas de entrada para infecções como intertrigo. Mas, inicialmente, vamos relembrar alguns conceitos importantes sobre o tema:
– Pé de risco: Presença de DAOP OU perda da sensibilidade protetora, sem lesão trófica
– Pé diabético: Presença de úlcera (lesão trófica)
– Principal exame para avaliação de sensibilidade protetora: Monofilamento 10g
Esta breve introdução tem o intuito de trazer alguns conceitos primordiais para melhor proveito de uma revisão publicada recentemente no Lancet sobre o tema, que discutiu sobre as causas, prevenção e o manejo de úlceras diabéticas.
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Fatores que contribuem para a formação de úlceras
Os autores da revisão dividiram os fatores que contribuem para a formação de úlceras dentro de três grandes categorias que organizam nosso raciocínio de maneira prática frente à abordagem do paciente com diabetes e pé de risco:
- Predisposição
- Precipitação
- Perpetuação
- Predisposição
Processos envolvidos na predisposição são aqueles que aumentam a chance de lesões cutâneas que promovam soluções de continuidade da pele, que precede a formação da úlcera. Os principais fatores envolvidos na predisposição são a doença arterial periférica (DAOP) e a neuropatia diabética, com perda da sensibilidade protetora. O acometimento de fibras motoras pode levar a alterações no equilíbrio e anormalidades de carga em certas regiões do pé, ao passo que as alterações de fibras finas contribuem para a menor sensibilidade e percepção de traumas. Além disso, a neuropatia autonômica pode contribuir para formação de lesões pela perda da sudorese, levando a ressecamento da pele.
2. Precipitação
Já a precipitação envolve fatores como traumas acidentais e sobretudo o aumento das forças locais, levando a constante pressão exacerbada em determinado ponto, que acaba por sofrer isquemia local e ulceração. Tal fator comumente está associado à PSP, uma vez que o paciente deixa de perceber que a região está sofrendo pressão exagerada.
Além disso, traumas auto infligidos como cortes de unha ou remoção de calos podem contribuir, ainda que em menor quantidade.
3. Perpetuação
A perpetuação ocorre pela dificuldade na cicatrização das lesões, algo comum em indivíduos com úlceras diabéticas, que comumente apresentam inflamação persistente, com menor capacidade de angiogênese e envolvimento de biofilme. Além disso, o próprio fator mecânico induzindo a repetição da lesão no mesmo local impede a cicatrização adequada e, portanto, o alívio de pontos de pressão deve ser priorizado para adequada recuperação da úlcera.
Manejo inicial das úlceras
O manejo inicial do pé, seja com úlceras já presentes ou incipientes, é fundamental para reduzir o risco de morbidade e amputações. Sempre devemos iniciar analisando se a úlcera está ou não infectada. Quando houver suspeita de infecção, o tratamento apropriado deve ser estabelecido, de acordo com o risco de bactérias resistentes e suspeita subjacente de osteomielite ou não. Após, devemos proceder à avaliação da presença ou não de doença arterial periférica (DAOP) com isquemia crítica, além de comorbidades adicionais que requeiram intervenção imediata.
Na avaliação de DAOP, é importante lembrar que nem todo diabético com a condição apresentará os sintomas clássicos de claudicação intermitente. Outro ponto importante é que a presença de neuropatia autonômica pode dar a impressão de que o pé está bem perfundido e quente, “escondendo” uma DAOP subjacente.
Logo, em toda avaliação, é fundamental a palpação de pulsos pedais, ainda que sua acurácia diagnóstica seja baixa. É importante utilizarmos o índice tornozelo braquial (ITB) ou a análise do doppler pedal para diagnóstico ou exclusão de DAOP. Na suspeita, é fundamental a avaliação com especialista (cirurgia vascular) para determinação da necessidade de revascularização, uma vez que a ausência de suprimento arterial sanguíneo pode impedir a cicatrização das úlceras.
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Cicatrização das úlceras
Um dos pontos principais trazidos na revisão é justamente sobre a promoção da cicatrização das lesões. Além dos pontos previamente mencionados, outro ponto fundamental é a retirada da carga de pressão sobre a úlcera.
Apesar de não haver até o momento terapias capazes de recuperar a neuropatia em si, é possível evitar que a pressão persista no mesmo local, atrapalhando a cicatrização e induzindo à formação de novas lesões. Para isso, o uso de dispositivos e órteses pode ser de grande valia. A retirada de pressão (de contato total) por 20 dias pode promover até mesmo uma mudança no padrão histológico de inflamação para um perfil mais favorável.
Dispositivos não removíveis parecem ser superiores do que os removíveis para a cicatrização, porém não são bem tolerados e podem gerar ulcerações nos locais de contato, além de aumentar o risco de quedas. Portanto, as opções mais recomendadas são as removíveis. Dentre estas, podemos exemplificar com uso de órteses, palmilhas e até mesmo sapatos de solado duro.
Outras intervenções recomendadas incluem a possibilidade do uso de curativos com sucrose octa sulfato, por acelerar consideravelmente o tempo de cicatrização das lesões. O mesmo é capaz de inibir atividade de protease e metaloproteinases.
Uma opção discutida recentemente é o uso do oxigênio hiperbárico, mas que ainda carece de estudos de maior evidência.
Conclusões
O desenvolvimento de úlceras que determinam o diagnóstico do pé diabético é uma das complicações mais esquecidas pelos médicos, porém uma das mais temidas pelos pacientes, sobretudo pelo risco de amputações. A atenção ao exame dos pés, manejo adequado de fatores de risco, tratamento precoce de úlceras e adoção de medidas que reduzam a chance de novas ulcerações é fundamental no manejo de indivíduos com diabetes.
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