Doença de Crohn: abordagem diagnóstica e conduta frente a achados
A doença de Crohn é uma doença inflamatória intestinal que pode acometer todo trato gastrointestinal, de forma transmural, podendo levar a complicações como estenoses e fístulas.
O seu diagnóstico precoce, dentro de uma janela de oportunidade, permite tratamento eficaz alvo-dirigido e reduz o risco de complicações e danos intestinais.
Na última década, houve uma revolução nos conhecimentos do monitoramento e tratamento dessa doença.
EPIDEMIOLOGIA
· Pode acometer qualquer faixa etária, mas apresenta pico de incidência bimodal: o maior, na faixa etária entre 18 e 35 anos e o menor entre 50 e 60 anos.
· Na última década, ocorreu uma transição epidemiológica, com uma tendência ao platô de novos casos em países desenvolvidos e aumento de novos casos nos países em desenvolvimento, como nos países asiáticos e sul-americanos. Isso provavelmente se deve à mudança do estilo de vida e alimentação nesses países, que sofreram às consequências da industrialização tardiamente em relação aos desenvolvidos.
FATORES DE RISCO FATORES DE PROTEÇÃO
História familiar 1ª grau (concordância entre
gêmeos monozigóticos 50%) Aleitamento materno na infância
Tabagismo Contato com a natureza na infância
Exposição a antibióticos Dieta saudável
Consumo de alimentos ultraprocessados Prática de atividade física
FISIOPATOLOGIA
Trata-se de fisiopatologia multifatorial, conforme demonstrado a seguir:
MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
· São variáveis, pois dependem da localização, fenótipo, extensão e gravidade da doença.
DOENÇA LUMINAL DOENÇA ESTENOSANTE DOENÇA FISTULIZANTE
· Diarreia crônica
· Dor abdominal
· Fadiga
· Perda ponderal · Dor abdominal pós prandial · Distensão abdominal · Náuseas e vômitos · Depende do local da fístula a)Enterovesical: fecalúria, pneumatúria, ITU repetição b) Enteroentérica: assintomática ou complicada com abscesso/ coleção inflamatória; c) Retovaginal: dispareunia, saída de secreção fecal pela vagina
· Atraso puberal e retardo de crescimento devem motivas investigação de DII em crianças e adolescentes.
· Manifestações extraintestinais podem estar presentes em até 50% dos casos: oculares uveíte, episclerite e esclerite Cutâneas eritema nodoso, pioderma gangrenoso, psoríase, Crohn metastático, síndrome de Sweet Hepáticas colangite esclerosante primária, hepatite autoimune. doença pulmonar granulomatosa, pancreatite aguda idiopática ou autoimune, articulares espondiloartrite axial e/ou periférica, entesite
Na história clínica, devem ser avaliados diagnósticos diferenciais, tais como: Infecções gastrointestinais e viagens recentes, contato prévio com tuberculose, uso de medicamentos, como antiinflamatórios não esteroides.
No exame físico, deve-se avaliar sinais de anemia, desnutrição, avaliação minuciosa de exame físico do abdome e avaliação perianal.
ABORDAGEM DIAGNÓSTICA
O diagnóstico de DC requer combinação de dados clínicos, laboratoriais, endoscópicos, histológicos e de imagem transversal. A avaliação deve ser cuidadosa, a fim de excluir diagnósticos diferenciais, como tuberculose intestinal, doença de Behçet, enterocolites infecciosas.
O diagnóstico de doença de Crohn em pacientes menores de 6 anos requer avaliação com testes genéticos, visto que nessa faixa etária, predominam doenças monogênicas e imunodeficiências, como doença granulomatosa crônica.
a) Achados laboratoriais
Hemograma Pode evidenciar anemia, leucocitose e trombocitose
Marcadores inflamatórios (VHS e PCR) Elevação de PCR apresenta bom VPP, porém valores normais não excluem DC.
Calprotectina fecal ≤ 40 μg/g: bom VPN ≥ 1000 μg/g: VPP 78,7% para atividade de DC ≤ 250 μg/g: Boa correlação com remissão endoscópica ≥ 250 μg/g repetido, na ausência de sintomas:
– Chance de recidiva de 50% em 3 meses
– Avaliação nutricional (macro/micronutrientes)
– Hipoalbuminemia e deficiências de ferro, vitamina D, B12, B6, ácido fólico, selênio e zinco podem ser encontrados.
b) Achados endoscópicos
– Ulcerações longitudinais, profundas, serpinginosas; eritema, edema, mucosa com padrão de pedra de paralelepípedo
– Uso de índices endoscópicos de gravidade são recomendados (ex: SES-CD)
c) Achados histológicos
– Granuloma epitelioide (não caseoso): presente em menos de 20% das biópsias;
– Outros achados: infiltrado inflamatório focal irregular, presença de agregados linfoides.
d) Achados de imagem
– Os exames de imagem (enterorressonância, enterotomografia e ultrassom intestinal) são úteis na avaliação de atividade de doença, especialmente em delgado.
– Vários achados podem ser encontrados na investigação da doença de Crohn, tais como aumento da espessura da parede intestinalintensidade e padrão do realce parietal; avaliação da extensão de acometimento; presença de estenoses e dilatação à montante; presença de lesões salteadas; presença de fístulas e abscessos; aumento da vascularização da vasa recta (denominado “sinal do pente”); proliferação gordurosa, indicando cronicidade do processo inflamatório; presença de adenopatia mesentérica.
OBS: Na suspeita de doença inflamatória intestinal de delgado, com dúvidas diagnósticas com outros métodos, deve-se considerar o uso de cápsulo endoscópica e/ou enteroscopia.
Feito o diagnóstico a doença de Crohn deve ser classificada com base em localização, fenótipo e gravidade.
TRATAMENTO
· O tratamento da doença de Crohn é alvo-dirigido (treat-to-target) e deve alcançar metas de remissão clínica, laboratorial e endoscópica definidas pelo STRIDE – II.
· É de suma importância o diagnóstico e tratamento precoces, dentro da janela de oportunidade, a fim de evitar dano intestinal. Estudos demonstram taxas de remissão maiores durante a indução do tratamento em pacientes com menor duração da doença (menor ou igual a 18 meses).
·O tratamento da doença de Crohn deve ser feito por equipe multidisciplinar composta por gastroenterologistas, coloproctologistas, nutricionistas especializados e profissionais de saúde mental;
TRATAMENTO MEDICAMENTOSO
· O uso de aminossalicilatos não é efetivo na doença de Crohn
· Antibióticos são recomendados no tratamento de abscessos perianais e intra-abdominais
· Budesonida pode ser considerada na indução de remissão da doença de Crohn ileal/ileocecal leve. Corticoide sistêmico (ex: prednisona) deve ser considerado na indução de remissão da DC moderada a grave, porém não deve ser utilizada na terapia de manutenção.
· Imunomoduladores:
– Compreendem as tiopurinas (ex: azatioprina) e metotrexato.
– Devem ser considerados em monoterapia na manutenção de remissão em pacientes corticodependentes ou em comboterapia com anti-TNF, a fim de evitar imunogenicidade.
– As tiopurinas apresentam eficácia limitada. Os principais efeitos colaterais são intolerância gastrointestinal (em até 15% dos pacientes), mielossupressão, pancreatite idiossincrática e aumenta risco de malignidades (linfoma/ neoplasias hematológicas, cancer de pele não melanoma e cânceres do trato urinário. Deve-se usada com cautela em idosos e homens jovens (maior risco de neoplasias nesses grupos).
· Os tratamentos com terapia biológica (anti-TNF, anti IL 12/23; anti IL-23; anti-integrina) e/ou pequenas moléculas (filgotinib e upadacitinib) revolucionaram o tratamento da DC. A tabela a seguir, sintetiza dados sobre os imunobiológicos e pequenas moléculas, eficazes na indução e manutenção da remissão da doença de Crohn.
MEDICAMENTO EFEITOS COLATERAIS LIMITAÇÕES
ANTI-TNF (Infliximabe, adalimumabe, certolizumabe)
Vias de adm: intravenosa/Subcutânea
Maior risco de infecções graves, incluindo tuberculose e maior risco de linfoma, especialmente em idosos e na associação com tiopurinas. Pode cursar com psoríase Apresenta maior risco de imunogenicidade. Análise agrupada de ECRs limitada para avaliar dados de remissão clínica livre de esteroides, radiológica e bioquímica, desfechos paradoxal associados a qualidade de vida e eventos adversos graves
Anti-integrina Vedolizumabe
Vias de adm: intravenosa/Subcutânea
Principais eventos adversos: exacerbação da doença de Crohn; artralgia; cefaleia; náuseas. Baixa incidência de reação transfusional. Aumenta risco de infecções entéricas e sinopulmonar. Pode cursar com mialgia difusa intensa. Evidências limitadas para avaliar eventos adversos graves (escassez de dados). Dados relacionados à remissão endoscópica, radiológica e histológica não são controlados por placebo. Dados limitados sobre normalização de biomarcadores.
Anti IL12/23
Ustekinumabe
Vias de adm: intravenosa/Subcutânea
Principais eventos adversos: IVAS, reações infusionais locais. Eventos adversos raros e graves incluem: infecções graves, artralgias, erupção cutânea, cefaleia e elevação de transaminases Poucos dados sobre melhora de biomarcadores e remissão endoscópica.
Anti IL 23
Risankisumabe
Vias de adm: intravenosa/Subcutânea
Principais eventos adversos: hipersensibilidade e reações infusionais locais; hepatotoxicidade; cefaleia; artralgia e IVAS. Faltam estudos de mundo real Perfil de segurança a longo prazo desconhecido no contexto da doença de Crohn.
Inibidor da JAK
Upadacitinibe
Via de adm: oral
Principal evento adverso grave: Herpes Zoster (não é frequente na DC) Deve ser usado com cautela em pacientes > 65 anos com fatores de risco ou tabagismo, devido a risco potencial de malignidade e eventos cardiovasculares.
· Com o advento de novas terapias, existe debate em relação ao posicionamento e sequenciamento das terapias. O estudo SEAVUE foi o primeiro estudo head-to-head, comparando o uso de ustekinumabe e adalimumabe na indução e manutenção da remissão em DC moderada a grave, em pacientes naives. Esse estudo não demonstrou diferença significativa entre as drogas. Existem ainda alguns dados indiretos obtidos por metanálise, que evidenciam que infliximabe foi a droga mais eficaz na indução de remissão clínica, risankisumabe foi a droga mais eficaz nos pacientes falhados e upadacitinibe foi a droga mais eficaz em manter remissão.
· A escolha da terapia biológica deve, portanto, levar vários fatores em consideração:
a) localização, extensão e atividade de doença;
b) via de administração;
c) perfil de segurança;
d) presença de manifestações extra-intestinais ou outras doenças autoimunes.
Situações especiais Terapia inicial proposta
Idade ≥ 60 anos ou outros fatores de risco
para infecções graves Vedolizumabe ou ustekinumabe
Doença perianal Infliximabe (adalimumabe – 2ª linha)
Alta carga inflamatória (úlceras profundas,
aumento de PCR, hipoalbuminemia) Anti-TNF ou upadacitinibe
Psoríase/ Artrite psoriásica Anti-TNF ou ustekinumabe
Espondiloartropatia axial Anti-TNF ou upadacitinibe
Pré-concepção ou gravidez Anti-TNF, vedolizumabe ou ustekinumabe
Prevenção de recorrência pós operatória Anti-TNF ou vedolizumabe
Contra- indicação a tiopurinas Vedolizumabe, ustekinumabe ou upadacitinibe
Perda de resposta a anti-TNF por
imunogenicidade Anti-TNF alternative + imunomodulador, vedolizumabe, ustekinumabe ou upadacitinibe
TRATAMENTO CIRÚRGICO
Indicações cirurgias para doença de Crohn
· Cirurgia de urgência
a) Obstrução intestinal
b) Abdome agudo perfurativo
· Cirurgia eletiva
a) Refratariedade clínica
b) Doença perianal com fistulas complexas e abscessos perianais
· O manejo cirúrgico deve ser multidisciplinar:
a) otimização nutricional;
b) Evitar/ reduzir esteroides;
c) Prevenção de eventos tromboembólicos;
d) Cessar tabagismo;
e) Profilaxia/ monitoramento pós operatório
f) Adotar estratégias cirúrgicas que permitam preservação intestinal e manutenção da continência fecal, sempre que possível.
MENSAGENS PRÁTICAS
· Houve importante crescimento no conhecimento e tratamento da doença de Crohn na última década.
· É importante que o tratamento dessa doença seja feito de forma individualizada, avaliando as particularidades do paciente e traçando a melhor estratégia terapêutica.
· Além disso, é importante que esse cuidado seja feito por equipe multidisciplinar e busque a remissão global da doença.
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