Doenças do TGI durante a gestação
As doenças do trato gastrointestinal (TGI) são causas frequentes de preocupação, desconforto e riscos durante a gestação, período em que podem agudizar e em que o tratamento se torna mais complexo, por conta da necessidade de consideração dos eventos adversos maternofetais.
No Brasil, estima-se que mais de metade das gestações não são planejadas, o que dificulta o aconselhamento médico e a preparação para a concepção, violando uma regra de ouro, que é a otimização prévia das comorbidades pré-existentes.
O médico que acompanha as mulheres em idade fértil com doenças do TGI, especialmente as graves, como doenças inflamatórias intestinais e as hepatopatias, devem sempre se atentar para o momento atual da paciente, orientando a contracepção nos casos pertinentes ou preparando o terreno para uma gravidez planejada, o que deve incluir a suspensão de drogas teratogênicas, suplementação de ácido fólico, atualização do cartão vacina e orientação sobre o melhor momento para engravidar, sob o aspecto da condição de base.
A abordagem deve ser multiprofissional, envolvendo os médicos gerais, gastroenterologistas-hepatologistas e ginecologistas-obstetras.
Pirose, náuseas e vômitos
A tríade de sintomas acima mencionada acomete entre 30 e 90% das gestantes.
A síndrome de náuseas e vômitos da gestação geralmente tem início com 4 a 6 semanas, pico entre 8 e 12 semanas e término com 20 semanas de idade gestacional.
A pirose, por sua vez, é mais comum no terceiro trimestre, sob influência de fatores anatômicos e da ação da progesterona, que promove o relaxamento do esfíncter inferior do esôfago.
As orientações gerais incluem as mudanças dietéticas e do estilo de vida, evitando-se alimentos picantes, gordurosos, frituras e ácidos, bem como aqueles com aromas mais intensos. As refeições devem ser fracionadas, em pequenos volumes. Um exemplo de dieta bem tolerada nos momentos de crises é a dieta BRAT (bananas, arroz, purê de maçã e torradas), dando-se preferência por fontes energéticas proteicas em detrimento das gordurosas.
As opções terapêuticas incluem o gengibre (cápsulas de 250 mg, com até 4 tomadas diárias), a piridoxina (vitamina B6, 10 a 25 mg a cada 8 horas) e a sua combinação com anti-histamínicos, como a difenidramina.
No manejo do refluxo gastroesofágico, os antagonistas do receptor H2, como a famotidina, são utilizados com frequência. Já os inibidores da bomba de prótons (IBPs) podem ser considerados em casos refratários. Uma metanálise com 26 estudos não demonstrou impactos significativos em desfechos maternofetais, por exceção de 1 estudo, que mostrou uma maior propensão, embora não significativa, de risco de malformações congênitas.
Veja também: Guideline sobre manejo de náuseas e vômitos na gravidez e hiperêmese gravídica
Hiperêmese gravídica
A hiperêmese gravídica é uma forma intratável da síndrome de náuseas e vômitos da gestação, e que leva à desidratação, emagrecimento acima de 5% em relação ao peso pré-gestacional e distúrbios hidroeletrolíticos.
A prevalência chega a 2%, com início de sintomas geralmente no primeiro trimestre e com resolução de 80% dos casos ao se alcançar as 20 semanas, embora alguns possam persistir durante toda a gravidez e inclusive se estender ao período pós-parto.
Deve-se pesquisar hipertireoidismo, níveis muito elevados de beta-HCG e estrógeno. Condições pré-existentes, como doenças psiquiátricas, diabetes e asma podem estar implicados, bem como gestação múltipla ou molar.
Até 50% das mulheres acometidas apresenta-se como aumento de enzimas hepáticas. Dessa forma, é importante realizar o diagnóstico diferencial com doenças hepatobiliares (litíase biliar, hepatites virais e fármaco-induzidas), vasculares (trombose da veia porta) e renais, entre outras.
O tratamento é pautado na piridoxina em concomitância com a difenidramina, devendo-se lembrar também da importância da suplementação de tiamina (100 mg/dia por 7 dias, seguidas por 50 mg/dia) para a prevenção da síndrome de reabilitação e encefalopatia de Wernicke. A metoclopramida é útil e não se associa ao aumento do risco de defeitos congênitos. A ondansetrona, por sua vez, pode ser utilizada em casos graves, com demanda por internação hospitalar, mas é um tratamento de segunda linha, especialmente pela presença de relatos de defeitos cardíacos quando utilizada no primeiro trimestre.
Em uma revisão da Cochrane com 25 estudos, não foi demonstrada diferença significativa entre a potência dos principais medicamentos utilizados na hiperêmese gravídica (metoclopramida, ondansetrona e prometazina).
A metilprednisolona é o último reduto na síndrome de hiperêmese gravídica, com o potencial de reduzir as reinternações. A dose empregada é de 16 mg, endovenosa, a cada 8 horas (equivalente a 60 mg de prednisona/dia), por 3 dias, seguindo-se uma redução gradual ao longo de duas semanas até a dose mínima eficaz, com duração máxima do tratamento de seis semanas. Há relatos de aumento pequeno na prevalência de fenda palatina quando utilizada antes de 10 semanas de gestação
Leia mais: Saiba o que é hiperêmese gravídica e como tratar esta complicação rara
Constipação intestinal
A constipação intestinal tem prevalência de até 40% nas gestantes e as hemorróidas se desenvolvem em 80%, especialmente no terceiro trimestre, para o que há contribuição da progesterona ao reduzir a motilidade do TGI.
Recomenda-se uma adequada ingestão de fibras dietéticas (30 gramas/dia) e hidratação oral (30 a 40 mL/kg/dia).
Os agentes formadores de bolo, como psyllium e metilcelulose, são recomendados, bem como os laxativos osmóticos, a exemplo do polietilenoglicol e a lactulose.
A terapia local das hemorroidas com hidrocortisona, na forma de espuma, é considerada segura.
Endoscopias digestivas
As endoscopias digestivas eletivas devem ser postergadas para depois da gestação. Já as endoscopias não urgentes, mas prioritárias, devem ser preferencialmente agendadas para o segundo semestre. As endoscopias de urgência, enfim, podem ser realizadas a qualquer idade gestacional.
As gestantes com doença hepática crônica avançada devem ter atualizado o rastreio de varizes esofágicas, que tendem a se agravar pela hemodinâmica da gestação. Dessa forma, a endoscopia digestiva alta (EDA) deve ser agendada para o segundo trimestre, a menos que o exame tenha sido realizado no último ano. O objetivo principal dessa conduta é orientar a terapia como beta-bloqueadores não seletivos ou as ligaduras elásticas de varizes esofágicas.
A retossigmoidoscopia flexível ou colonoscopia podem ser realizadas diante da suspeita de câncer de cólon ou atividade grave de doença inflamatória intestinal, por exemplo. Contudo, estão contraindicadas na presença de descolamento de placenta, parto iminente, ruptura de membranas ou doença hipertensiva gestacional.
A sedação e anestesia durante a gestação, pelo potencial de indução de hipotensão arterial e hipóxia materna, podem deflagrar hipóxia, sofrimento e até mesmo morte fetal. Dessa forma, faz-se necessária a realização do procedimento por profissionais experientes, sob indicações bem estabelecidas e, na dependência da idade gestacional, com monitorização fetal.
Nas mulheres em puerpério e amamentando, a retomada da amamentação pode se dar logo que houver recuperação anestésica, pois a meia-vida das drogas anestésicas empregadas é muito curta, dispensando a ordenha prévia ou descarte do leite materno inicial.
Um detalhe importante é sobre o uso do cautério durante a gestação, que deve ser preferencialmente o bipolar. A gestante, posicionada preferencialmente em decúbito lateral esquerdo, para se evitar a compressão da veia cava pelo útero gravídico, deverá ter a pá adesiva afixada na perna ou ombro esquerdos, evitando-se a condução elétrica através do líquido amniótico.
Doença inflamatória intestinal
Metade dos pacientes com doença inflamatória intestinal tem o diagnóstico antes dos 30 anos, e a presença da condição aumenta o risco de desfechos obstétricos desfavoráveis. A doença em remissão, entretanto, apresenta desfechos gestacionais semelhantes aos das mulheres sem doença inflamatória intestinal.
A fertilidade na doença retocolite ulcerativa tende a ser normal, exceto nos casos submetidos à colectomia total com anastomose ileoanal em bolsa em J, que favorece a formação de aderências pélvicas que podem obstruir as trompas falopianas. Dessa forma, se uma mulher planeja engravidar, a dissecção pélvica deve ser evitada e, diante da necessidade de intervenção cirúrgica, a colectomia subtotal, com derivação à Hartmann, com ileostomia terminal ou anastomose ileorretal são preferíveis à colectomia total.
A retocolite ulcerativa costumeiramente tem mais exacerbações durante a gravidez do que a doença de Crohn.
Os procedimentos endoscópicos, como a retossigmoidoscopia flexível, podem ser úteis para avaliar atividade e extensão da doença. Entretanto, a calprotectina fecal realizada antes da concepção, a cada trimestre da gestação e no período pós-parto, com um ponto de corte de 200 mcg/mg, tem um bom valor preditivo, de cerca de 70%, para a determinação de atividade da doença, muitas vezes dispensando as modalidades diagnósticas mais invasivas.
Os aminossalicilatos (messalazina e sulfassalazina) são considerados seguros na gestação, desde que seja realizada a suplementação com ácido fólico (1 mg de 12/12 horas), iniciado pelo menos três meses antes da gestação, para evitar defeitos do tubo neural.
A azatioprina e a 6-mercaptopurina, em estudos mais recentes, demonstram-se seguras, sendo a consideração mais importante a anemia neonatal, presente em até 60% dos recém-nascidos de mães expostas.
O metotrexato é contraindicado pela teratogenicidade e a sua meia-vida longa gera necessidade de desprescrição pelo menos seis meses antes da concepção.
Os agentes biológicos, como os anti-TNFs, devem ser continuados para a manutenção da remissão na maioria dos casos. O infliximabe e o adalimumabe atravessam a placenta depois de 20 semanas de gestação, de forma que os recém-nascidos devem ter a vacinação para organismos vivos atenuados postergada para depois de seis meses de idade. O certolizumabe, por sua vez, não atravessa a placenta.
O metronidazol pode ser útil nos casos de pouchite, doença de Crohn perianal e abscessos intracavitários e, assim como a amoxicilina-clavulanato, é considerado seguro na gestação.
Os corticoides podem ser utilizados para tratamento dos reativações da doença inflamatória intestinal e não aumentam, de forma significativa, o risco de de anormalidades, a exemplo de fenda palatina. Por outro lado, aumentam o risco de trabalho de parto prematuro, baixo peso e baixa estatura para idade gestacional, crescimento intrauterino restrito e risco de admissão em unidade de terapia intensiva neonatal.
O parto vaginal deve ser evitado em pacientes com doença perianal ativa, doenças fistulizantes complexas, bolsa ileal em J e retite em atividade, para minimizar a instrumentação da região perineal, evitando lesão esfincteriana e preservando os mecanismos da continência.
CPRE
O CPRE pode ser realizado durante a gravidez diante de condições de urgência, como a colangite aguda, coledocolitíase e alguns casos de pancreatite aguda biliar.
Entretanto, a realização no primeiro trimestre, quando possível, deve ser evitada, por associação a piores desfechos fetais.
A gestação aumenta o risco de pancreatite pós-CPRE (12 vs 5%, P < 0,001), sendo a complicação atenuada em hospitais universitários de alto fluxo (9,6 vs. 14,6%). A exposição à radiação deve ser mínima, sendo que a dose teratogênica é de 50 mGy e os piores desfechos fetais são esperados com doses acima de 100 mGy.
Colecistectomia
A colecistectomia videolaparoscópica (CVL) é segura durante a gestação, particularmente no segundo semestre. A cirurgia eletiva deve ser evitada no primeiro e terceiro trimestre.
A doença biliar é a segunda causa não obstétrica mais frequente de dor abdominal aguda na gestação, perdendo apenas para a apendicite aguda.
O tratamento conservador da colecistolitíase sintomática, baseado em hidratação venosa, controle de sintomas e evitação de gatilhos dietéticos, se associa a recorrência de 60% de cólica biliar durante a mesma gravidez, resultando em maior número de passagens pelo departamento de emergência e maior probabilidade de cesárea. Portanto, a CVL é considerada superior ao manejo conservador.
Na presença de pancreatite aguda biliar, a CVL se associa à redução na odds ratio para readmissão em 85%.
Os casos de colecistite aguda grave, com instabilidade hemodinâmica, podem ser submetidos à drenagem percutânea da vesícula biliar enquanto ponte para uma terapia definitiva cirúrgica.
Colestase intra-hepática da gestação
As elevações leves da fosfatase alcalina são comuns na gravidez. A colestase intra-hepática da gravidez é caracterizada por prurido, aumento dos ácidos biliares acima de 10 µmol/L e elevação leve a moderada das transaminases (10 a 20 vezes), com bilirrubinas mantendo-se abaixo de 6 mg/dL.
O nível sérico dos ácidos biliares guarda correlação com o risco de perda fetal intrauterina, sendo mais proeminente quando acima de 100 µmol/L, indicativos de realização do parto em 36 semanas; valores abaixo de 40 µmol/L são compatíveis com a gestação a termo; e níveis intermediários devem indicar o parto entre 36 e 39 semanas.
O ácido ursodesoxicólico, na dose de 10 a 15 mg/kg/dia, reduz o prurido, os níveis séricos de ácidos biliares e das transaminases. Uma metanálise recente demonstrou redução de eventos adversos fetais.
O prurido pode ser manejado, de forma adicional, se necessário, com colestiramina e rifamicina.
Pré-eclâmpsia, HELLP e doença esteatótica da gestação
As doenças hepáticas mais graves, como a pré-eclâmpsia, síndrome HELLP e a doença esteatótica aguda da gestação, tem manejo suportivo pautado no tratamento das comorbidades, como a hipertensão arterial sistêmica, coagulopatia e crise convulsivas, sendo costumeiramente resolvidas a partir do parto, embora possam evoluir com insuficiência hepática aguda e necessidade de transplante hepático.
A aspirina (81 mg/dia), iniciada entre 12 e 16 semanas de gestação, é uma medida que pode ser empregada como profilaxia nos casos de alto risco, com administração estendida até o momento do parto, como em casos de pré-eclâmpsia prévia, gestação múltipla, diabetes, hipertensão arterial sistêmica, doença renal crîonica e doenças autoimunes.
A biópsia hepática deve ser evitada, a menos que possa impactar de forma substancial na conduta.
Hepatite B e C
As sorologias virais são recomendadas para todas as gestantes.
Aquelas com triagem positiva devem ser submetidas a dosagem do HBV-DNA e das enzimas hepáticas.
Valores de HBV-DNA acima de 200 mil cópias/mL no terceiro trimestre devem ser gatilhos para a consideração de terapia antiviral com tenofovir disoproxil fumarato, para atenuar o risco de transmissão materno-fetal.
O tratamento da hepatite C durante a gestação não é consensual, mas pode ser considerado de forma individualizada.
Hepatite autoimune e transplante hepático
Os dados de longo prazo quanto à imunossupressão no cenário da hepatite autoimune e transplante hepático são limitados.
A reativação da condição de base ou rejeição pode ocorrer em até 30% dos casos, acarretando eventos maternofetais adversos.
Logo, o racional é a manutenção da terapia imunossupressora na dose mínima eficaz, atenuando os riscos maternofetais.
O micofenolato mofetila, entretanto, é contraindicado na gestação, por conta do risco de defeitos fetais, o que motiva a sua suspensão entre 6 e 12 semanas da concepção.
Conclusão e Mensagens práticas
- As doenças do trato gastrointestinal são proeminentes durante a gestação, sendo agravadas por fatores anatômicos e hormonais. Além da grande morbidade imposta por sintomas corriqueiros como pirose, náuseas e vômitos, condições graves, como as doenças inflamatórias intestinais e as hepatopatias, colocam as gestantes na categoria de alto risco obstétrico, motivando uma atenção multiprofissional próxima para a definição compartilhada sobre as melhores condutas a serem traçadas em cada caso.
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