Logotipo Afya
Anúncio
Nefrologia4 abril 2024

Entenda as gamopatias monoclonais de significado renal

Enquanto o tratamento de doenças renais mediadas por autoimunidade é guiado pelos achados histopatológicos renais, o de MGRS deve ser determinado pela natureza do clone.
Por Felipe Mesquita

As gamopatias monoclonais emergiram como causas importantes de lesão renal, e atualmente são responsáveis por uma variedade de lesões glomerulares, túbulo-intersticiais e vasculares. As gamopatias monoclonais são identificadas pela presença de uma imunoglobulina monoclonal no plasma, urina ou ambos, que é produzida mais frequentemente por células plasmáticas clonais e menos comumente por linfócitos B de origem clonal. Pacientes que não atendem aos critérios definidos para uma condição hematológica evidente (por exemplo: mieloma múltiplo, leucemia linfocítica crônica, linfoma linfoplasmacítico), nem apresentam danos em órgãos-alvo recebem o diagnóstico de gamopatia monoclonal de significado indeterminado (MGUS – do inglês Monoclonal Gammopathy of Undetermined Significance).

Pacientes que apresentam doença renal relacionada à gamopatia monoclonal, porém sem a carga tumoral necessária, não devem ser considerados como portadores de câncer, uma vez que o distúrbio hematológico se comporta mais como MGUS. No entanto, tais pacientes ainda possuem um distúrbio clonal que requer tratamento eficaz. Ao longo das últimas duas décadas, ficou claro que distúrbios renais podem ser induzidos por imunoglobulinas monoclonais nefrotóxicas, independentemente da carga tumoral.

MGRS

O espectro das gamopatias monoclonais de significado renal (MGRS – do inglês Monoclonal Gammopathy of Renal Significance) representa qualquer distúrbio clonal de células B ou plasmáticas que não atende aos critérios atuais para tratamento imediato (no caso de neoplasias hematológicas), mas que produz uma imunoglobulina monoclonal nefrotóxica que resulta diretamente ou indiretamente em doença ou lesão renal. Esta categoria diagnóstica inclui MGUS e doenças hematológicas ‘latentes’ (também conhecidas como ‘smouldering’) por, conceitualmente, não apresentarem danos a órgãos-alvo.

Como regra geral, imunoglobulinas do subtipo IgM são produzidas principalmente por clones B pré-malignos ou associados a malignidade indolente de células B, enquanto imunoglobulinas do subtipo IgG ou IgA, são majoritariamente associadas a células plasmocitárias clonais. Embora a classificação diagnóstica e as recomendações de tratamento sejam válidas para a maioria dos pacientes, há exceções aos casos apresentados acima. Nos casos de “smouldering” mieloma ou “smouldering” macroglobulinemia de Waldenström, pode haver uma discrepância entre a carga tumoral e os danos renais. 

Mecanismos de toxicidade renal 

As lesões renais decorrentes de uma carga tumoral alta são representadas pela nefropatia por excreção de cilindros de cadeia leve, geralmente atribuída ao mieloma múltiplo e caracterizada por cadeias leves monoclonais que se ligam à proteína de Tamm-Horsfall (também conhecida como uromodulina) por meio de seu domínio variável, formando cilindros obstrutivos. Portanto, essa condição não é classificada como uma lesão renal relacionada à MGRS. A MGRS está mais comumente associada a cargas tumorais baixas e níveis baixos de imunoglobulinas monoclonais (representa pela porção leve, pesada ou por ambas), e o mecanismo mais comum é a má conformação de um fragmento de cadeia leve de imunoglobulina monoclonal, resultando na formação de multímeros amiloides tóxicos e fibrilas amiloides. Outros mecanismos observados incluem a formação de microtúbulos no parênquima renal e a presença de cristais ou inclusões intracelulares de imunoglobulinas, afetando principalmente os túbulos proximais, bem como a agregação e deposição de imunoglobulinas ao longo do mesângio, membrana basal glomerular e membrana basal tubular. A formação de trombos e a deposição de imunoglobulinas monoclonais na microvasculatura renal também pode estar associada à presença de crioglobulinas monoclonais. O processo de deposição de imunoglobulinas ativa a cascata inflamatória com remodelamento das células mesangiais, liberação de citocinas (como o TGF-β) e ativação do complemento (principalmente C3). O processo de toxicidade renal pode estar associado à deposição de cadeias leves, pesadas ou ambas.   

Lesões renais associadas às gamopatias monoclonais 

A maioria das doenças renais associadas à MGRS são distúrbios glomerulares, com a tubulopatia proximal associada a cadeias leves e a histiocitose armazenadora de cristais como exceções. As lesões renais relacionadas à MGRS são classificadas de acordo com as características dos depósitos de imunoglobulinas monoclonais na microscopia eletrônica: organizados, não organizados ou ausentes (vide tabela abaixo). A subcategoria “diversos” de lesões associadas à MGRS inclui doenças renais que normalmente não estão associadas à MGRS, como a doença anti-GBM (Membrana Basal Glomerular) secundária a uma gamopatia monoclonal. O anticorpo monoclonal anti-GBM pode ser IgG ou IgA. 

Organizadas Não-organizadas Associadas a GMSR e sem depósito de imunoglobulina 
Fibrilares Microtubulares Inclusões ou depósitos cristalinos   
Amiloidose associada a imunoglobulinas (AL, AH) Glomerulonefrite imunotactoide Tubulopatia proximal associada a cadeias leves Doença de depósito de imunoglobulinas monoclonais
(MIDD) 
Glomerulopatia por depósito de C3 associado a gamopatia monoclonal 
Glomerulonefrite fibrilar monoclonal Glomerulonefrite crioglobulinêmica tipo 1 e tipo 2 Histiocitose armazenadora de cristais Glomerulonefrite proliferativa associada a depósito de imunoglobulinas monoclonais (PGNMID) Microangiopatia trombótica 
  Glomerulonefrite associada a cristais (crio ou não) Miscelânea  

 

Suspeição clínica e diagnóstico 

A incidência de gamopatias monoclonais e doença renal crônica de outras etiologias aumenta com a idade, sendo provável que um mesmo paciente apresente MGUS e DRC de causa hipertensiva ou diabética. Portanto, estabelecer o diagnóstico diferencial da etiologia da doença renal é de extrema importância nesses pacientes. Dessa forma, realizar uma biópsia renal em um paciente com diabetes e perda rápida progressiva da função renal ou aumento da proteinúria é razoável, especialmente se o diabetes estiver bem controlado e/ou se não houver evidência de doença microvascular extra-renal. Um nível elevado de proteína na urina (>1,5 g por dia), uma razão anormal de cadeias leves livres no soro e hematúria microscópica estão associados a lesões de MGRS. Assim, uma biópsia renal deve ser considerada para pacientes que apresentam gamopatia monoclonal com esses achados laboratoriais ou uma rápida perda da função renal. O diagnóstico de lesões associadas a MGRS requer a integração de alterações morfológicas observadas na microscopia óptica com os achados da imuno-histoquímica (imunofluorescência ou imunoperoxidase) e estudos de microscopia eletrônica de transmissão, além da correlação com a história médica do paciente e os achados laboratoriais. Em alguns pacientes, técnicas auxiliares são necessárias para estabelecer o diagnóstico, incluindo imunofluorescência com protease, marcação de ouro imunológico ultra estrutural e microdissecção a laser seguida por cromatografia líquida e espectrometria de massa. Para confirmar a natureza monotípica dos depósitos de imunoglobulina, a coloração por imunofluorescência para subclasses de IgG deve ser realizada em amostras de biópsia de pacientes com distúrbios glomerulares relacionados à deposição de uma IgG monoclonal (como PGNMID, glomerulopatia imunotactoide, glomerulonefrite crioglobulinêmica tipo I e nefropatia membranosa monoclonal) ou de uma cadeia pesada monoclonal truncada (como doença de deposição de cadeia pesada, doença de deposição de cadeia pesada e leve ou amiloidose de cadeia pesada). Vale ressaltar que a restrição de subclasses de IgG por si só não é suficiente para estabelecer a monoclonalidade, pois algumas doenças glomerulares não relacionadas à MGRS — como a nefropatia membranosa policlonal associada a PLA2R e a glomerulonefrite fibrilar não monoclonal — comumente apresentam coloração restrita a uma subclasse de IgG, mas coloração positiva para ambas as cadeias leves κ e λ. A identificação de proteínas de complemento C1q e/ou C3 dentro dos depósitos renais monotípicos pode revelar a causa de hipocomplementemia em pacientes com lesões associadas a MGRS, como PGNMID, glomerulonefrite imunotactoide, glomerulonefrite crioglobulinêmica tipo I, glomerulonefrite por ativação e deposição de C3 e doença de deposição de cadeia pesada ou de cadeia pesada e leve. Uma vez feito o diagnóstico de doença relacionada à MGRS, uma avaliação hematológica deve ser realizada para identificar o clone que está secretando a imunoglobulina monoclonal patogênica. Eletroforese de proteínas no soro e na urina, imunofixação e um ensaio de cadeia leve livre no soro devem ser realizados se a proteína monoclonal ainda não tiver sido identificada. Uma biópsia da medula óssea muitas vezes é necessária para a identificação clonal. O clone patológico também pode ser detectado em uma amostra de biópsia de linfonodo ou por meio de citometria de fluxo de sangue periférico, especialmente em pacientes com linfoma e LLC. Tomografia computadorizada, com ou sem tomografia por emissão de pósitrons (PET-TC), pode ajudar a localizar lesões focais fora da medula óssea, como lesões em linfonodos ou plasmáticas. A solicitação do FISH para detecção da t(11:14) e imuno-histoquímica (marcação BCL2) do espécime medular devem ser realizados para uma melhor identificação do clone.  

Tratamento das MGRS 

Enquanto o tratamento de doenças renais mediadas por autoimunidade é guiado pelos achados histopatológicos renais, o tratamento de MGRS deve ser determinado pela natureza do clone (de células B ou células plasmáticas) que produz a imunoglobulina monoclonal nefrotóxica. Para doenças relacionadas a MGRS, a terapia direcionada ao clone tem se mostrado superior à terapia imunossupressora utilizada em muitas doenças renais mediadas por autoimunidade, como glicocorticoides, inibidores de calcineurina, micofenolato mofetila, ciclofosfamida e rituximabe em baixas doses. Resultados favoráveis em pacientes com MGRS, incluindo a preservação da função renal, requerem terapia direcionada ao clone, baseada em agentes anteriormente restritos a pacientes com cânceres hematológicos evidentes. Quanto melhor a resposta hematológica, melhor será o prognóstico renal. Com clones de células plasmáticas, isso é atualmente alcançado de forma otimizada com esquemas baseados na associação de drogas com o bortezomibe. Pacientes com clones de células B que expressam CD20 devem ser tratados com terapia baseada em rituximabe. A reavaliação frequente das medidas hematológicas (nível sérico de cadeia leve livre e presença ou ausência de pico monoclonal) e das medidas renais (creatinina sérica e níveis de proteína urinária) é importante no tratamento de MGRS para avaliar a resposta à terapia e minimizar os efeitos tóxicos. É importante observar que os pacientes afetados têm uma taxa muito alta de recorrência após o transplante renal (aproximadamente 90%) se a gamopatia monoclonal não for eliminada antes ou imediatamente após o transplant

(marcação BCL2) do espécime medular devem ser realizados para uma melhor identificação do clone.  

Tratamento das MGRS 

Enquanto o tratamento de doenças renais mediadas por autoimunidade é guiado pelos achados histopatológicos renais, o tratamento de MGRS deve ser determinado pela natureza do clone (de células B ou células plasmáticas) que produz a imunoglobulina monoclonal nefrotóxica. Para doenças relacionadas a MGRS, a terapia direcionada ao clone tem se mostrado superior à terapia imunossupressora utilizada em muitas doenças renais mediadas por autoimunidade, como glicocorticoides, inibidores de calcineurina, micofenolato mofetila, ciclofosfamida e rituximabe em baixas doses. Resultados favoráveis em pacientes com MGRS, incluindo a preservação da função renal, requerem terapia direcionada ao clone, baseada em agentes anteriormente restritos a pacientes com cânceres hematológicos evidentes. Quanto melhor a resposta hematológica, melhor será o prognóstico renal. Com clones de células plasmáticas, isso é atualmente alcançado de forma otimizada com esquemas baseados na associação de drogas com o bortezomibe. Pacientes com clones de células B que expressam CD20 devem ser tratados com terapia baseada em rituximabe. A reavaliação frequente das medidas hematológicas (nível sérico de cadeia leve livre e presença ou ausência de pico monoclonal) e das medidas renais (creatinina sérica e níveis de proteína urinária) é importante no tratamento de MGRS para avaliar a resposta à terapia e minimizar os efeitos tóxicos. É importante observar que os pacientes afetados têm uma taxa muito alta de recorrência após o transplante renal (aproximadamente 90%) se a gamopatia monoclonal não for eliminada antes ou imediatamente após o transplante. 

Anúncio

Assine nossa newsletter

Aproveite o benefício de manter-se atualizado sem esforço.

Ao assinar a newsletter, você está de acordo com a Política de Privacidade.

Como você avalia este conteúdo?

Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.

Referências bibliográficas

Compartilhar artigo