O papel do microbioma intestinal nas doenças oculares
O microbioma intestinal é um complexo biossistema que coloniza o trato gastrointestinal e tem um papel essencial no metabolismo de nutrientes na proteção contra patógenos exógenos, na manutenção da barreira intestinal e na regulação da função imunológica.
As crianças, até completarem quatro anos de idade, têm um microbioma altamente instável, que atinge um equilíbrio após essa fase do desenvolvimento. Vários fatores vão influenciar na composição do microbioma de um adulto, sendo eles: estilo de vida, dieta, localização geográfica, genética e uso de antibióticos. Os idosos vão sofrer mudanças na composição do microbioma devido à senescência e algumas doenças degenerativas já foram associadas ao microbioma senescente.
A homeostase intestinal depende do equilíbrio na composição da microbioma, uma vez que a disbiose, induz a inflamação sistêmica. A disbiose provoca desregulação das respostas imunológicas, aumentando a produção de citocinas pró-inflamatórias e alterações nas populações de células B e T, que induz a disfunção da barreira mucosa, que leva à translocação de patógenos através da barreira epitelial. A inflamação sistêmica crônica pode levar à destruição tecidual, que contribui para a ocorrência de várias doenças, inclusive oculares.
Métodos
Realizada revisão sistemática sobre a relação entre o microbioma intestinal e doenças oculares foi avaliada a interação que ocorre entre microbioma, metabólitos específicos derivados de micróbios, o sistema imunológico e a fisiopatologia de doenças oculares. Na revisão, foram selecionados artigos que utilizaram o sequenciamento shotgun de metagenoma completo. Avaliado o papel da disbiose na degeneração macular relacionada à idade (DMRI), oclusão da artéria retiniana e coriorretinopatia serosa central e doenças oculares inflamatórias, como uveíte.
Resultado e Discussão
A retina tem privilégio imunológico, devido à barreira hematorretiniana e pela barreira hematoaquosa, além disso conta com um sistema imunológico inato próprio, formado pela microglia e o sistema do complemento, conjunto esse responsável por preservar a homeostase retiniana. O sistema imunológico inato próprio modula tanto a indução quanto a expressão da inflamação intraocular, mas possui uma capacidade limitada para regeneração e reparo.
Alterações na barreira hematorretiniana e hematoaquosa podem desencadear doenças, como a uveíte, promovendo o recrutamento de células inflamatórias e resultando em inflamação intraocular. Em relação aos tecidos imunocompetentes, tecidos com privilégio imunológico, como o olho, têm maior tendência a desenvolver doenças inflamatórias resultantes de alterações no microbioma intestinal.
Degeneração macular relacionada à idade (DMRI)
A DMRI é uma das doenças oftalmológicas mais prevalentes em idosos, afeta a mácula, levando à perda irreversível da visão central e, eventualmente, à cegueira legal. Sua patogênese é multifatorial e, apesar de não ser completamente esclarecida, tem contribuição de fatores de risco ambientais, epigenéticos e genéticos.
As mudanças que acontecem com a idade podem afetar a retina de duas maneiras principais: primeiro, através da imunossenescência, que é quando o sistema imunológico fica menos eficiente com o passar dos anos, diminuindo a capacidade de combater infecções e doenças e segundo o inflammaging, que é uma inflamação leve e duradoura que ocorre devido ao sistema imunológico estar sempre um pouco ativado, mesmo quando não há uma infecção real.
Essa ativação contínua pode provocar inflamações e aumentar a produção de substâncias que causam inflamação, como as citocinas. A inflamação crônica de baixo grau pode danificar o epitélio pigmentado retiniano (EPR) e o endotélio, levando à morte das células fotorreceptoras e neovascularização, como acontece na DMRI.
Oclusão da artéria retiniana (OAR)
A American Heart Association e a American Stroke Association definiram que a oclusão da artéria retiniana é um equivalente a acidente vascular cerebral (AVC), classificado como uma emergência médica e oftalmológica. A principal causa de OAR é a obstrução completa ou parcial da artéria central da retina ou de um de seus ramos, principalmente de êmbolos oriundos artéria carótida interna, arco aórtico ou do coração, levando à isquemia retiniana. Há, portanto, uma forte associação entre aterosclerose e OAR. Fatores que influenciam a aterosclerose e as doenças cardiovasculares (DCV) geralmente decorrem de uma interação entre causas genéticas e ambientais.
Diversos estudos detectaram a presença de DNA bacteriano em placas ateroscleróticas. As evidências cientificas também apontam que no microbioma intestinal de pacientes com aterosclerose, ocorre redução de genes relacionados à síntese de moléculas anti-inflamatórias e níveis reduzidos do antioxidante β-caroteno e propuseram que o microbioma intestinal pode desempenhar um papel na regulação das vias inflamatórias do hospedeiro na aterosclerose.
Dessa forma, concluíram que a microbiota intestinal pode influenciar na regulação positiva dos níveis de colesterol, fator importante na patogênese da aterosclerose e condições associadas, como a OAR.
Coriorretinopatia serosa central (CSC)
A CSC é caracterizada por um descolamento seroso localizado da retina neurossensorial envolvendo a mácula. Há duas formas: aguda, com duração < 6 meses e crônica > 6 meses. A patogênese continua pouco elucidada. Diversas pesquisas clínicas indicaram que níveis elevados de esteroides no sangue podem estar associados à patogênese da CSC, além de que o uso de esteroides nasais, orais e intravenosos pode representar fatores de risco significativos para essa condição.
Há evidências científicas correlacionado o microbioma intestinal e os hormônios esteroides, destacando particularmente as variações entre os gêneros nesse microbioma, além das modificações observadas em mulheres grávidas e naquelas em fase pós-menopausa. Nesse sentido, alterações no microbioma intestinal podem afetar os níveis de hormônios relacionados ao estresse, que são considerados fatores relevantes no desenvolvimento do CSC.
Uveíte
Uveíte é conjunto de doenças inflamatórias da úvea (íris, no corpo ciliar e coroide). Pode ser secundária a doenças infecciosas ou a causa não infecciosas. Um dos principais fatores que contribuem para a uveíte autoimune é uma resposta imune inadequada que provoca autoinflamação e/ou autoimunidade.
Várias pesquisas indicaram que infecções microbianas sistêmicas, frequentemente associadas à disbiose, podem desempenhar um papel importante na uveíte. Os microrganismos podem estar envolvidos, de forma direta ou indireta, em diversas formas de uveíte não infecciosa. No entanto, as relações entre o microbioma e a autoimunidade do hospedeiro são complexas e influenciadas por múltiplos fatores.
Além do crescente reconhecimento de que antígenos estranhos originados do microbioma podem atuar como adjuvantes, estudos experimentais demonstraram que o microbioma pode contribuir para a diferenciação de células Th17 autorreativas e outras células T auxiliares que promovem a inflamação ocular mediada por imunidade.
Em condições patológicas, como na doença inflamatória intestinal, a permeabilidade do revestimento epitelial pode ser alterada, permitindo que simbiontes patogênicos e metabólitos do intestino entrem na corrente sanguínea. Mesmo em situações normais, os microrganismos intestinais produzem uma grande quantidade de metabólitos. Além disso, a composição do microbioma intestinal pode influenciar nessa permeabilidade.
Algumas espécies bacterianas podem aumentá-la, facilitando a entrada de componentes bacterianos, como lipopolissacarídeos, no organismo. Isso pode desencadear uma resposta inflamatória mediada por receptores de reconhecimento de padrões, levando à produção de citocinas e outros mediadores inflamatórios, o que pode ser um fator que induz a uveíte.
Na verdade, uma alteração na composição do microbioma está associada a várias doenças autoimunes, como diabetes tipo 1, esclerose múltipla e artrite reumatoide. Além disso, a uveíte representa cerca de 4% a 6% das complicações da doença inflamatória intestinal, sugerindo uma relação entre a disbiose do microbioma e a uveíte.
Limitações
As descobertas relacionadas ao microbioma intestinal podem transformar nossa compreensão de diversas doenças oculares, mas é necessário que sejam confirmadas por mais pesquisas. Estudos anteriores demonstraram que metabólitos microbianos, como ácidos graxos de cadeia curta e lipopolissacarídeos, que estão presentes em alta quantidade no intestino, desempenham um papel importante na regulação das respostas imunes adaptativas intestinais, influenciando tanto a saúde quanto o desenvolvimento de doenças.
Uma das limitações do estudo é que, embora existam associações entre características funcionais e composição do microbioma intestinal com doenças oculares, ainda não se sabe exatamente como os micróbios e seus metabólitos desencadeiam a patogênese dessas condições. A falta de compreensão da fisiopatologia limita a capacidade de desenvolver intervenções terapêuticas específicas baseadas no microbioma.
Impactos na prática clínica
Compreender melhor a influência do microbioma intestinal nas doenças oculares pode abrir caminho para novas abordagens terapêuticas. Alterar o microbioma intestinal — por meio de mudanças na dieta, uso de probióticos ou outras intervenções — pode proporcionar novas oportunidades para tratar ou prevenir essas condições.
Leia também em Oftalmologia
Abordagens terapêuticas para tratar a a coriorretinopatia serosa central crônica – Portal Afya
Piora da qualidade do ar pelas queimadas e as consequências para a saúde ocular – Portal Afya
Terapia de luz para prevenção e controle de miopia – Portal Afya
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.