CBMI 2024: Hemocomponentes em pacientes pediátricos oncológicos
O painel “Oncologia” no XXIX Congresso Brasileiro de Medicina Intensiva (CBMI) 2024 abordou um tema muito relevante para a prática diária dos pediatras intensivistas. A Dra. Dafne Bourguignon (São Paulo/SP) ministrou a palestra “Uso racional de hemocomponentes no paciente oncológico”. Pontos de destaque da aula estão sintetizados a seguir.
Uso profilático x uso terapêutico
A Dra. Dafne destacou as seguintes abordagens com relação à transfusão de hemocomponentes:
- Uso terapêutico: em vigência de sangramento.
- Uso profilático: muitas vezes, a transfusão é indicada com base somente em valores do hemograma, sem considerar as condições clínicas do paciente (um uso “emocional” de quem prescreve). É importante sempre lembrar do uso racional dos hemocomponentes (Patient Blood Management).
Patient Blood Management – uso racional dos hemocomponentes
A palestrante chamou a atenção para este tópico, que consiste em uma abordagem sistemática, baseada em evidências e focada no paciente, visando melhor manejo e resultados destes, através do uso seguro e racional dos hemocomponentes. As estratégias consistem em EVITAR as transfusões dispensáveis e REDUZIR a espoliação recorrente e excessiva, por meio de um envolvimento multidisciplinar. Cada instituição deve ter suas rotinas e processos bem estabelecidos. A Dra. Dafne também enfatizou que as crianças têm maior risco de sangramento quando comparadas aos adultos (conforme o ensaio clínico randomizado de Josephson e colaboradores, 2012) e mostrou os graus de sangramento segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS):
- Grau 1:
- Petéquias/púrpuras localizadas em até 2 localizações, ou esparsas/não confluentes;
- Sangramento orofaríngeo, epistaxe com duração 30 minutos;
- Grau 2:
- Melena, hematêmese, hemoptise, presença de sangue vivo nas fezes;
- Epistaxe volumosa ou sangramento orofaríngeo com duração > 30 minutos;
- Sangramento oral que cause um grande desconforto;
- Petéquias/púrpuras difusas;
- Hematomas múltiplos com >2 cm cada ou único com >10cm;
- Hematúria visível;
- Sangramento anormal em local de punção ou procedimento invasivo;
- Sangramento vaginal inesperado com saturação de mais que 2 absorventes/24 horas;
- Sangramento visível em fluidos de cavidades;
- Sangramento de retina sem déficit visual.
- Grau 3:
- Sangramento com necessidade de transfusão de concentrado de hemácias nas últimas 24 horas e sem instabilidade hemodinâmica;
- Sangramento importante em fluidos de cavidades;
- Sangramento cerebral visível em tomografia sem sinais e sintomas neurológicos
- Grau 4:
- Sangramento debilitante incluindo sangramento de retina com déficit visual;
- Sangramento cerebral não fatal com sinais e sintomas neurológicos;
- Sangramento associado com instabilidade hemodinâmica (hipotensão, queda > 30 mmHg na pressão sistólica ou diastólica);
- Sangramento fatal de qualquer origem.
Estudos mostrados pela Dra. Dafne:
- Lacroix e colaboradores (2007): Transfusion strategies for patients in pediatric intensive care units.
- Ensaio clínico randomizado controlado em que foram avaliadas duas estratégias de transfusão de hemácias: restritiva (Hb ≤ 7g/dL) x liberal (Hb ≤ 9,5g/dL);
- Esse estudo mostrou que uma abordagem restritiva, com um limiar de hemoglobina de 7 g/dL, pode reduzir as necessidades de transfusão de hemácias sem aumentar os desfechos adversos em crianças graves estáveis.
- Steiner e colaboradores (2018): Recommendations on RBC Transfusion Support in Children With Hematologic and Oncologic Diagnoses From the Pediatric Critical Care Transfusion and Anemia Expertise Initiative
- Consenso de especialistas;
- Uma concentração de hemoglobina de 7-8 g/dL é recomendada para pacientes pediátricos com doença oncológica ou submetidos a transplante de células-tronco hematopoiéticas.
- Valentine e colaboradores (2018): Consensus Recommendations for RBC Transfusion Practice in Critically Ill Children From the Pediatric Critical Care Transfusion and Anemia Expertise Initiative
- Consenso de especialistas;
- Foi sugerida uma concentração de hemoglobina de 7-8 g/dL para crianças graves com diagnóstico oncológico ou em risco de doença grave e hemodinamicamente estáveis.
- Mo e Delaney (2021): Transfusion in Pediatric Patients: Review of Evidence-Based Guidelines
- Revisão da literatura baseada em evidências;
- Plaquetas:
- A maior parte das transfusões é feita PROFILATICAMENTE para pacientes para pacientes oncológicos e de TCTH;
- Para procedimentos menores (biópsia de medula óssea, passagem de cateter venoso central, sem sangramento ou coagulopatia): 20 mil plaquetas (Association for the Advancement of Blood & Biotherapies [AABB] e American Society of Clinical Oncology [ASCO]);
- Cirurgia não-neurológica, sem sangramento ou coagulopatia: 40-50 mil (AABB) ou 50 mil plaquetas (ASCO);
- Coagulação intravascular disseminada [CIVD], neurocirurgia ou cirurgia oftalmológica: 75-100 mil plaquetas (British Guidelines);
- Oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO): 100 mil plaquetas (circuito com heparina).
- Plasma: Os limiares de transfusão são controversos
- Não deve ser dado para correção de coagulopatia leve a moderada, se não houver sangramento ou realização de procedimento invasivo (coagulopatia severa = INR > 2,5 e/ou TTPa > 60”).
- Crioprecipitado: Os limiares de transfusão são controversos
- Os níveis de fibrinogênio recomendados variam de 100 mg/dL (tradicionalmente indicado para hipofibrinogenemia congênita) até 150 a 200 mg/dL para deficiência adquirida secundária cirurgia cardiovascular ou trauma.
- Nellis e colaboradores (2022): Executive Summary of Recommendations and Expert Consensus for Plasma and Platelet Transfusion Practice in Critically Ill Children: From the Transfusion and Anemia EXpertise Initiative—Control/Avoidance of Bleeding (TAXI-CAB)
- Em pacientes neonatais ou pediátricos gravemente enfermos oncológicos ou submetidos a transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH), não há evidências suficientes para fazer uma recomendação sobre indicações específicas ou estratégias de transfusão para direcionar a transfusão de plasma ou plaquetas;
- Em pacientes pediátricos gravemente enfermos oncológicos ou submetidos a TCTH, transfusões profiláticas de plaquetas podem ser consideradas para uma contagem de plaquetas < 10.000 mm³;
- Em pacientes pediátricos gravemente enfermos oncológicos ou submetidos a TCTH, transfusões terapêuticas de plaquetas podem ser consideradas para sangramento moderado ou grave;
- Em pacientes pediátricos gravemente enfermos oncológicos ou submetidos a TCTH, transfusões terapêuticas de plasma para coagulopatia menor (INR ≤ 1,5; aPTT ≤ 1,5) podem não ser benéficas, a menos que a cirurgia seja realizada em um estado crítico (órbita, cérebro, nervo facial, coluna vertebral, etc.).
- Carson e colaboradores (2023): Red Blood Cell Transfusion: 2023 AABB International Guidelines
- Recomendações para pacientes hospitalizados:
- Adultos hemodinamicamente estáveis: estratégia restritiva (Hb 7); Hb 7,5 para cirurgia cardíaca Hb 7,5 e 8,0 para cirurgia ortopédica ou doença cardiovascular preexistente;
- Adultos com doença onco hematológica: estratégia restritiva (Hb 7);
- Crianças criticamente enfermas, sem hemoglobinopatia, cardiopatia cianótica ou hipoxemia severa: Hb 7;
- Crianças hemodinamicamente estáveis, com cardiopatia congênita: Hb 7 (reparo biventricular); Hb 9 (ventrículo único) e Hb entre 7 e 9 (cardiopatia congênita não corrigida).
Mensagens finais
A Dra Dafne deixou as seguintes mensagens ao final de sua apresentação:
- Plaqueta não é antibiótico, portanto, não deve ser prescrita de horário (a cada 8 ou 12 horas, por exemplo). Conforme folder da iniciativa “EducaSangue” mostrado na aula, “A transfusão de plaquetas deve ser baseada na contagem plaquetária do dia. Uma dose é geralmente suficiente”;
- “Quem recebe a transfusão é o paciente e não o hemograma, de acordo com outro folder da iniciativa “EducaSangue”.
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