Crianças se sentem atraídas por alimentos ultraprocessados, aponta estudo
O ambiente doméstico influencia significativamente o consumo de alimentos pelas crianças. Infelizmente, alimentos ultraprocessados são, muitas vezes, especificamente direcionados ao público infantil, aumentando o risco de obesidade. O JAMA Pediatrics publicou, recentemente, um estudo bastante intrigante acerca do tema. Os pesquisadores investigaram a hipótese de que a presença de alimentos ultraprocessados em casa está associada a um aumento na atenção dada a imagens desses alimentos pelas crianças. McNeel e colaboradores (2024) se basearam em pesquisas prévias de rastreamento ocular que mostram um índice de massa corporal (IMC) mais elevado em crianças que tendem a prestar mais atenção em produtos alimentares industrializadas, o que sugere uma relação complexa entre o ambiente doméstico, os hábitos alimentares e o risco de ganho de peso.
Metodologia
O estudo conduzido foi do tipo transversal e incluiu 84 crianças. As crianças participantes foram submetidas a um rastreamento ocular com 16 imagens de alimentos ultraprocessados emparelhadas com imagens de alimentos não processados, correspondentes em cor ou escala.
A classificação dos alimentos foi feita com base no sistema NOVA de quatro categorias, desenvolvido na Universidade de São Paulo. O sistema NOVA consiste em uma estrutura de classificação relacionada com o processamento de alimentos:
- Categoria 1: Alimentos não processados. São obtidos diretamente de animais ou plantas e não contêm açúcares, óleo, sal ou outras substâncias adicionadas. Esta categoria engloba carnes e vegetais frescos ou congelados, farinhas não cozidas, grãos, iogurte, leite, massas, nozes, ovos e sementes;
- Categoria 2: Ingredientes culinários processados. São substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos como prensagem, centrifugação e concentração (p. ex., azeite e manteiga).
- Categoria 3: Alimentos processados. São itens do primeiro grupo modificados por processos industriais relativamente simples e que poderiam ser realizados em ambiente doméstico, com a adição de uma ou mais substâncias do segundo grupo, como sal, açúcar ou gordura. (p. ex., conservas, queijos e pães artesanais)
- Categoria 4: Alimentos ultraprocessados. Não são propriamente alimentos, mas, sim, formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos do primeiro grupo. Essas substâncias incluem açúcar, óleos e gorduras de uso doméstico, mas também isolados ou concentrados proteicos, óleos interesterificados, gordura hidrogenada, amidos modificados e várias substâncias de uso exclusivamente industrial.
Os pais preencheram o “Inventário de Alimentos em Casa”, do qual foi calculada a proporção de alimentos de categoria 4 em comparação com a categoria 1 na residência por meio da seguinte proporção determinada por 2 nutricionistas: alimentos NOVA 4 / total de alimentos. Somente 3/263 alimentos das categorias 2 e 3 foram relatados. Dessa forma, ambas categorias foram excluídas da análise.
Também como parte da metodologia, houve a definição de dois vieses:
- Viés de orientação inicial:
Tempo até o 1º olhar para alimentos ultraprocessados
___________________________________________________________________________________________
(Tempo até o 1º olhar para alimentos ultraprocessados) + (Tempo até o 1º olhar para alimentos não processados)
- Viés de permanência:
(Tempo médio total de olhar para alimentos ultraprocessados) – (tempo médio total de olhar para alimentos não processados)
Resultados
As características demográficas do estudo revelaram que, das 84 crianças participantes, 54% eram do sexo feminino, com uma média de idade de 3,5 anos. A média do escore z do IMC foi de 0,07, indicando que a maioria das crianças apresentava um IMC próximo ao considerado saudável. Além disso, a análise dos dados mostrou que a proporção média de itens alimentares ultraprocessados disponíveis em casa era de 0,49, sugerindo que quase metade dos alimentos disponíveis na residência pertencia a essa categoria.
Os resultados sobre os vieses de atenção revelaram que o viés de orientação inicial médio foi de 42,73%. Esse viés foi mais acentuado entre as crianças que tinham maior disponibilidade de alimentos ultraprocessados em casa, com uma correlação positiva significativa (r = 0,34; P = 0,01). Em contraste, o viés de permanência em relação a esses alimentos foi medido em 964,7 milissegundos, mas não apresentou associação com o ambiente alimentar doméstico, evidenciada pela correlação negativa (r = −0,21; P = 0,34). Esses dados sugerem que a disponibilidade de alimentos ultraprocessados no lar pode influenciar a atenção das crianças de forma inicial, mas não afeta, necessariamente, o tempo de permanência do olhar.
Conclusão
O estudo mostrou que o ambiente alimentar doméstico pode, sim, desempenhar um papel na formação de vieses atencionais em relação aos alimentos ultraprocessados desde uma idade precoce. Para os pesquisadores, “modificar o ambiente alimentar doméstico para teoricamente reduzir o viés atencional em relação a alimentos ultraprocessados representa um alvo promissor para intervenções domiciliares visando cultivar hábitos mais saudáveis antes que o ganho excessivo de peso ocorra”.
Comentário: crianças e alimentos ultraprocessados
O comportamento infantil reflete diretamente o ambiente em que a criança é criada. Entre as principais preocupações observadas diariamente nos consultórios pediátricos, destacam-se as questões relacionadas aos hábitos alimentares e ao sono, um fenômeno que ocorre em diversas partes do mundo. Na prática, noto a dificuldade em promover a adesão a uma alimentação saudável, baseada em alimentos naturais ou minimamente processados, com uma barreira fortemente influenciada por fatores culturais. De fato, há uma complexidade de fatores relacionados à questão alimentar.
Frequentemente, observo pais que se dedicam a manter uma dieta sem açúcar e produtos ultraprocessados nos primeiros dois anos de vida, período crítico que abrange os “primeiros mil dias”, reconhecido como uma fase de oportunidades para o desenvolvimento de um microbioma intestinal sadio. Entretanto, eles se queixam de enfrentar uma sociedade que constantemente questiona a ausência de guloseimas, sugerindo que a criança pode sofrer emocionalmente por isso.
Outro tópico me chama bastante a atenção também no dia a dia. Quando a criança completa um aninho, ela já deve estar apta a se alimentar das refeições habituais da família. Mas atenção: essa recomendação se refere a uma alimentação saudável em que a criança pode comer os alimentos com a mesma consistência que a família come. Isso não significa que, se a família come hambúrguer todos os dias no jantar, que seja essa a alimentação proposta para a criança. Daí vem uma questão muito mais complexa: como ensinar à criança a querer comer o certo se os próprios pais não querem esse hábito para eles próprios?
Outro ponto de reflexão: após os dois anos, quando alimentos mais palatáveis passam a ser permitidos, muitos pais acabam dando uma pausa em todo o rigor da alimentação saudável que vinham conduzindo até então. Ainda que esses alimentos sejam introduzidos, deve haver um equilíbrio. Além disso, nessa idade, surgem os famosos “picky-eaters” ou “comedores seletivos”. Por questões de desenvolvimento neurológico e lembrando que a criança ainda tem um estômago menor que o de um adulto, a criança recusa muitos alimentos que comia antes e passa a selecionar mais a qualidade e a quantidade. Consequentemente, alimentos mais chamativos costumam ser introduzidos numa tentativa de ver a criança aceitar qualquer coisa.
Diante da pressão de tantas propagandas na mídia e da oferta de lanches pouco nutritivos em ambientes sociais, manter uma dieta balanceada torna-se um grande desafio para a pediatria do século XXI. Pediatras e profissionais que lidam com crianças (e, claro, com seus pais) devem iniciar uma educação alimentar desde cedo, com as famílias, visando construir uma base sólida para hábitos alimentares da criança e um estilo de vida mais favorável para a promoção de saúde do futuro adulto.
Com relação à metodologia, é bastante interessante e promissora a estratégia de pesquisa eye-tracking, isto é, de rastreamento ocular, através da qual a atenção é avaliada com um dispositivo que registra os movimentos oculares do indivíduo.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.