A adolescência é uma fase de transição da vida, que pode ser cercada por vulnerabilidades importantes. Infelizmente, comportamentos como autolesão e ideação suicida vem sendo descritos com frequência nesta população. Por isso, a identificação precoce desses sintomas pode ser vital para uma abordagem adequada. Entretanto, um grande desafio é conseguir que esses jovens falem o que se passa com eles, pois muitos relutam em admitir seus sentimentos. Perceber os sinais que indicam esse comportamento é de grande interesse para profissionais de saúde e familiares.
As ferramentas atualmente disponíveis para avaliação de suicídio nesta população são conhecidas e possuem um papel importante, mas também estão cercadas de limitações. Por exemplo, focam em sintomas isolados ao invés de avaliarem um contexto maior no qual o jovem está inserido (questões sociais, comportamentais e psicológicas envolvendo diferentes grupos, como a família e outros núcleos). Muitas também não foram desenvolvidas especificamente para adolescentes. Um estudo anterior também sugeriu que o poder preditivo dessas ferramentas seria limitado.

Machine learning no risco de suicídio
A chamada machine learning (ML), por sua vez, consegue trabalhar com uma grande quantidade de dados e é capaz de achar um padrão entre eles. Sendo assim, questiona-se se essas ferramentas seriam capazes de detectar dados sutis, que poderiam passar despercebidos pelos avaliadores e ferramentas tradicionais. A ideia é identificar com maior precisão os fatores de risco mais relevantes e melhorar as previsões que se relacionam ao risco de suicídio.
O artigo de Liu L. et al. se propõe a estudar como a tecnologia poderia auxiliar neste sentido. Com isso em mente, organizaram uma revisão sistemática da literatura com metanálise para estudar se o aprendizado de máquina (ML) poderia ser usado como uma ferramenta na predição de comportamento suicida.
Métodos
O artigo seguiu a diretriz PRISMA, tendo a busca sido realizada em quatro bases de dados (Pubmed, Embase, Cochrane e Web of Science) até abril de 2024. O risco de viés foi avaliado pela ferramenta PROBAST. A heterogeneidade foi avaliada pelo teste I2. A métrica padrão de desempenho usada na metanálise foi a AUC (área sob a curva Roc – capaz de avaliar o quanto cada modelo é eficaz para mensurar diferentes grupos, como os de risco e os que não possuem risco). Neste modelo, quanto mais próximo de 0,5 (50%), mais próximo do acaso e quanto mais próximo de 1,0 (100%), melhor a acurácia, não havendo nenhuma possibilidade de errar a classificação de grupos.
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No total foram incluídos 42 artigos. A população estudada era de jovens entre 11 e 20 anos, totalizando 1 milhão 408 mil 375 participantes. Foram analisados 104 modelos de ML para avaliar 3 padrões de comportamento e suas combinações:
- Autolesão não-suicida (ANS), na qual há a intenção de se machucar, mas sem desejo de morte. É considerado como um fator de risco importante para tentativas de suicídio).
- Ideação suicida é um padrão que varia desde pensar sobre a morte a até planejar suicídio.
- Tentativas de suicídio são comportamentos com a intenção de morrer.
- Combinações envolviam ter ideação e tentativas ou tentativas e ANS.
Resultados
De modo geral, as AUCs ficaram entre 70% e 80%, consideradas como boas métricas discriminativas para prevenção dos eventos avaliados. Esses resultados indicam que o ML tem potencial para distinguir quem está em risco e quem não está com bom poder de discriminação. A sensibilidade (capacidade de discernir quem possui risco) geral foi maior para as tentativas de suicídio; enquanto a maior especificidade (identificar corretamente quem não possui o risco) foi para a ANS. Alguns modelos parecem ser melhores, conforme o comportamento-alvo.
Também foram avaliados os tipos de ML que se saíram melhor. Os seguintes modelos ganharam destaque:
- Random Forest (RF): mais usado nos estudos. Lida bem com dados desbalanceados e modelos de relações não-lineares. Teve AUC maior que 80% nos 4 subgrupos;
- Extreming gradient boost (XGboost): se destacou pela capacidade de prever tentativas de suicídio com AUC de 0,87 e em torno de 0,8 para os demais eventos. Foi o modelo com maior sensibilidade (0,81) e especificidade (0,84) para prever o risco de suicídio;
- Outros promissores foram: LightGBM e redes neurais artificiais.
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Considerações
Apesar desses bons resultados, é necessário compreender as limitações envolvidas:
- Uma ressalva importante é sobre a qualidade metodológica dos estudos incluídos na revisão, como questões envolvendo análise estatística inadequada, pequeno tamanho da amostra ou a forma como lidam com as variáveis preditoras. Isso significa que, embora o resultado combinado dos estudos pareça ser bom, a conclusão de alguns modelos específicos deve ser vista com cautela.
- Validação dos modelos: a maioria dos artigos incluídos utilizou apenas validação interna (o teste com o modelo foi feito com o mesmo grupo original de onde foram extraídos os dados com que o modelo aprendeu), faltando a validação externa (que seria a capacidade de generalizar os resultados para outras circunstâncias diferentes daquela que abasteceram o sistema). Isso faz com que haja incerteza sobre a capacidade de funcionamento desses modelos no mundo real, não sendo possível prever se seu desempenho seria o mesmo com outras populações. Isso poderia fazer com que os resultados encontrados fossem mais “otimistas” do que a realidade do uso de sua aplicação geral.
- Dados usados para treinar os modelos: muitos saíram de um único local, tornando difícil a sua generalização. Muitas amostras não se mostraram suficientemente representativas, o que limita a generalização dos resultados;
- Há também a presença de vieses, como viés de seleção, de autorrelato, dificuldade de seguimento longitudinal e questões éticas pertinentes a dados sensíveis.
- Interpretação dos dados. Modelos de ML podem ser considerados como “black box”, isto significa que é difícil compreender a estrutura interna do modelo e como chegou àquela conclusão. A incompreensão sobre o modelo de decisão tomada pode se tornar uma barreira.
- Heterogeneidade entre os estudos: dificulta um pouco a comparação dos resultados, tendo sido realizadas análises de subgrupos.
Conclusão e mensagem prática
Portanto, o estudo destaca os bons resultados apresentados pela ML na capacidade de prever ANS, ideação suicida, tentativas de suicídio e suas combinações. Porém, ressalta que as limitações das pesquisas feitas até agora ainda não permitem seu uso de forma generalizada. O esclarecimento dessas limitações permite que novas pesquisas sejam feitas levando-se em consideração esses pontos e as questões éticas pertinentes ao tema para permitir que essa ferramenta venha auxiliar os cuidados com adolescentes no futuro.
Autoria

Paula Benevenuto Hartmann
Médica pela Universidade Federal Fluminense (UFF) ⦁ Psiquiatra pelo Hospital Universitário Antônio Pedro/UFF ⦁ Mestranda em Psiquiatria e Saúde Mental pela Universidade do Porto, Portugal.
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