O crescente problema do vício em jogos
Apesar de os danos causados pelo jogo serem reconhecidos há muito tempo, a situação tem mudado drasticamente com a exploração, por grandes corporações internacionais, das oportunidades oferecidas por produtos inovadores acessíveis em plataformas online. No Brasil, isso se reflete no crescimento exponencial dos jogos e apostas online, conhecidos como bets. Com esse aumento, cresce também a preocupação com desfechos negativos, como o vício em jogos.
Segundo o IPEC (antigo Ibope), 28 milhões de brasileiros já jogaram online apostando dinheiro, sendo que 13 milhões são jogadores regulares e dizem ter jogado no último mês, com uma média de duas apostas por semana. Com a pandemia de COVID-19, os jogadores online aumentaram suas apostas, agravando as consequências psicológicas e sociais para pessoas com comportamentos problemáticos de jogo.
Uma pesquisa de opinião do Instituto Locomotiva, aplicada entre os dias 3 e 7 de agosto deste ano, entrevistou 2.060 pessoas, com 18 anos ou mais, de 142 cidades de todo o país e traçou um perfil dos apostadores de bets. 53% são homens e 47% são mulheres. Quatro de cada dez jogadores têm entre 18 e 29 anos; 41% estão na faixa etária de 30 a 49 anos; e 19% têm 50 anos ou mais. Oito de cada dez são pessoas das classes CD e E. 45% dos jogadores admitem prejuízos financeiros com as apostas esportivas, 37% utilizaram recursos de outras coisas importantes e 30% têm prejuízos nas suas relações.
A constatação do perfil dos apostadores é especialmente alarmante se considerarmos os principais fatores de risco para desenvolver / manter um transtorno do jogo, que são: ser homem jovem solteiro ou casado há menos de 5 anos, viver sozinho, ter uma educação precária e enfrentar dificuldades financeiras.
Saiba mais: Riscos digitais: SBP alerta sobre os perigos dos jogos online para crianças
Trastorno do jogo
O transtorno do jogo é caracterizado por um padrão persistente e recorrente desadaptativo de jogo que se mantém a mesmo com consequências negativas em diversas esferas da vida. O jogo envolve arriscar algo de valor (geralmente dinheiro) em eventos de resultados incertos e aleatórios com a intenção de ganhar algo de maior valor. Estima-se uma prevalência no Brasil de 1% para transtorno do jogo, sendo que este é um transtorno crônico e progressivo.
Os estudos evidenciam uma agregação familiar do transtorno, com uma herdabilidade genética em torno de 50%. Traços de personalidade, especialmente a impulsividade, desempenham um papel no início e desenvolvimento do comportamento problemático de jogo, assim como os estilos de enfrentamento e os padrões cognitivos.
Como em outras dependências, observamos no transtorno do jogo a tolerância ao efeito do estímulo, uma perda do controle sobre o comportamento e a presença de consequências negativas da persistência do comportamento. Um quatro componente, o escapismo (jogar para lidar com estados emocionais negativos) e o “jogar para recuperar” o dinheiro perdido em apostas anteriores, é peculiar a esse transtorno.
No transtorno do jogo as apostas são estimuladas pela esperança de ganhar subitamente uma grande quantia que possa reverter uma situação financeira difícil. De maneira geral, os portadores do transtorno tomam decisões com base nas consequências imediatas, ignorando efeitos de longo prazo, como o fato de que as probabilidades estão contra o jogador que tenderá a perder dinheiro.
Uma minoria dos pacientes com transtorno do jogo (menos de 10%) buscam tratamento. O baixo conhecimento social sobre os distúrbios do jogo e a percepção do jogo como fraqueza moral são algumas das razões para a pequena procura por ajuda. Entre aqueles que buscam tratamento, a presença comorbidades psiquiátricas como transtornos depressivo, ansioso, de personalidade e o transtorno por uso de substâncias é frequente.
Tratamento
O tratamento do transtorno do jogo objetiva a supressão do comportamento de jogo problemático, reparação dos problemas causados pelo jogo e promoção da saúde física e mental. As estratégias terapêuticas e intervenções passam pela formulação de hipóteses sobre os fatores indutores e mantenedores do jogo problemático. Além das intervenções estritamente orientadas ao jogo, o tratamento pode se beneficiar de terapia familiar e orientação sobre questões financeiras e forenses.
A psicoeducação (fornecimento de informações ao paciente e familiares sobre jogo problemático e patológico) é a base da terapia, afastando a questão do julgamento moral. É importante falar os fatores de risco para o jogo, de modo a aumentar a autonomia do paciente, já que muitas vezes eles se comportam como se a perda de controle acontecesse de forma inesperada. Intervenções motivacionais também são úteis no início da terapia.
Algumas técnicas psicoterapêuticas são utilizadas para o transtorno. A dessensibilização por imaginação é uma delas, na qual atividades alternativas são imaginadas nas situações em que a ocorrência do jogo seria provável. Para pacientes em abstinência, com melhor grau de estabilidade emocional, pode ser realizada a exposição in vivo – os pacientes são expostos as situações de jogo, nas quais há um aumento da ansiedade e excitação, com o terapeuta auxiliando na diminuição desses sentimentos.
Veja também: Uma discussão sobre o “vício” em videogames
A reestruturação cognitiva é outra intervenção eficaz e visa a correção de distorções cognitivas. Os pacientes registram seus pensamentos quando desejam jogar e avaliam se são racionais ou irracionais. Para cada crença irracional, o paciente precisa construir uma alternativa racional.
Após um período mais longo de abstinência, é importante desenvolver as habilidades de enfrentamento dos pacientes, como solução de problemas, treinamento de habilidades sociais, controle de estresse e ampliação do repertório de lazer.
Não há nenhuma medicação aprovada para o transtorno do jogo. Os antagonistas opioides, como naltrexona, apresentam resultados positivos em ensaios clínicos, especialmente nos pacientes com história de transtorno por uso de álcool e relatos de fissura mais intensos no início do tratamento. Estudos com inibidores seletivos de recaptação de serotonina mostram resultados contraditórios. No que diz respeito ao uso de antipsicóticos, olanzapina não demonstrou benefício e o haloperidol apresentou um resultado negativo, aumentando o desejo de jogar. N-acetilcisteína também foi estudada nesse contexto, com resultados promissores.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.