Uso de tablet na primeira infância e explosões de raiva
Os anos pré-escolares são um período crítico para o desenvolvimento de habilidades de regulação emocional. Crianças que passam mais tempo usando telas perdem oportunidades de interações com cuidadores e outras crianças que são essenciais para exercitar e desenvolver a autorregulação. Por outro lado, crianças mais desafiadoras costumam ser mais expostas às telas, uma vez que os pais costumam usá-las para manejar os acessos de raiva dos seus filhos.
O estudo de Caroline Fitzpatrick e colaboradores buscou avaliar se níveis mais altos de uso de tablets na primeira infância prejudicam a regulação emocional, partindo da hipótese que o uso de tablets na primeira infância e a tendência à raiva e frustração se retroalimentam.
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Métodos
Os dados foram coletados no contexto de um estudo mais amplo sobre o uso de telas por crianças e pais durante a pandemia da covid-19. As informações foram coletadas em três momentos (entre abril e agosto de 2020 e 2021 e entre maio de 2022 e março de 2023).
Uma amostra comunitária de conveniência composta por 315 crianças foi estudada longitudinalmente, com avaliações aos 3,5 anos (2020), 4,5 anos (2021) e 5,5 anos (2022). Os pais foram recrutados através de anúncios em rádios e jornais na Nova Escócia/Canadá, cartazes e folhetos em eventos escolares e uma página no Facebook, tendo recebido incentivo financeiro para participar da pesquisa.
O uso de tablet foi avaliado com o Media Assessment Questionnaire. O tempo gasto em tablets e dispositivos similares (smartphones foram excluídos) em dias úteis e fins de semana foi dividido em 7 categorias: 0, menos de 30 min, 30 min a 1 hora, 1 a 2 horas, 2 a 3 horas, 4 a 5 horas e mais que 5 horas. O temperamento foi avaliado utilizando Children’s Behavior Questionnaire—Short Form.
A análise estatística avaliou a variação entre as crianças e fez comparações delas consigo mesmas (observando como a alteração no uso de tablets afeta a expressão de raiva/frustração ao longo do tempo, eliminando a necessidade de controlar variáveis como sexo e status socioeconômico). Por outro lado, 16,6% das informações foram perdidas ao longo do estudo.
Resultados
171 crianças (54%) foram identificadas pelos pais como nascidos meninos e 144 nascidas meninas (46%). A maior parte dos respondedores nasceram no Canadá (287, 91%) e são casados (258, 82%). Mães foram as respondedoras na maioria dos casos (294, 93,4%). As crianças da amostra passaram 6,5 horas por semana usando tablet aos 3,5 anos (T1), 6,7 horas por semana aos 4,5 anos (T2) e 7,0 horas por semana aos 5,5 anos (T3).
Houve correlações bivariadas positivas (ou seja, o aumento de uma variável está associado ao aumento da outra) estatisticamente significantes entre o uso de tablets em T1 e T2 (r = 0,55; P < .001) e T2 e T3 (r = 0,49; P < .001). No mesmo sentido, observou-se uma correlação ligeiramente mais forte para a raiva entre T1 e T2 (r = 0,63; P < .001) e T2 e T3 (r = 0,59; P < .001). Por fim, o uso de tablets e os sintomas de raiva estavam correlacionados transversalmente em cada idade (T1: r = 0,18; P = .001; T2: r = 0,23; P < .001; T3: r = 0,18; P = .01).
O aumento de 1 desvio padrão (DP) no uso de tablet aos 3,5 anos (o que corresponde a cerca de 1,22 horas por dia) foi, em média, associado a um aumento de 22% (IC 95%, 0,01-0,44) nas expressões de raiva aos 4,5 anos. Aos 4,5 anos, um aumento de 1 DP nas externalizações de raiva foi associado com um acréscimo de 22% (IC 95%, 0,01-0,43) no uso de tablet aos 5,5 anos (equivalente a 0,28 horas por dia).
Discussão
O uso de tablets por crianças aos 3,5 anos esteve significativamente associado à propensão à raiva e frustração um ano depois, aos 4,5 anos. Aos 4,5 anos, os acessos de raiva e frustração das crianças estavam positivamente associados ao uso de tablets aos 5,5 anos.
Tais achados sugerem que o uso de tablet pode comprometer a habilidade das crianças de lidar com suas emoções durante atividades cotidianas, bem como sugerem que as crianças que têm mais acessos de raiva acabam sendo mais expostas às estratégias digitais para contê-los.
As habilidades de regulação emocional das crianças pequenas melhoram rapidamente ao longo dos anos pré-escolares e evolui de um processo majoritariamente externo e mediado pelos pais para um processo interno, realizado pelas próprias crianças.
Os estudos mostram que as crianças aprendem a regular suas emoções por meio de dois mecanismos: a observação das estratégias de regulação emocional dos pais e o foco emocional na criação (quando os pais oferecem orientação emocional à criança, ajudando-as a entender, nomear e lidar com as emoções). Ambos os mecanismos são comprometidos pelo uso de tablet. Além disso, o uso de tablets pelos pais para regulação emocional das crianças (uma forma externa de regulação) reduz as oportunidades para que as crianças desenvolvam habilidades internas de regulação.
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Limitações
- Pesquisas futuras devem considerar a qualidade dos conteúdos consumidos no tablet e a natureza da interação das crianças com as telas (uso ativo (ex.: leitura) vs uso passivo (ex.: ver vídeos no YouTube);
- Amostra de conveniência – reprodução dos achados com amostras maiores é necessária;
- As crianças foram observadas durante a pandemia, período com características sócio-históricas únicas. Assim, os dados precisam ser replicados no período pós-pandêmico;
- O uso de tablet e as habilidades de regulação emocional foram relatados pelos pais, o que pode levar a vieses.
Impactos na prática clínica
- O uso de tablets pelas crianças contribuiu para o aumento das expressões de raiva e frustração e que maiores expressões emocionais de raiva/frustração levaram a um maior uso de tablets, possivelmente levando a uma retroalimentação ao longo do tempo;
- Os pais precisam ter cuidado ao introduzir o uso de tablets em crianças pré-escolares. Retardar a introdução e monitorar o uso pode ter benefícios no desenvolvimento das crianças;
- Pais de crianças que apresentam acessos de raiva também devem ser orientados a evitar usar telas como estratégia calmante;
- Pais devem ser estimulados a limitar seu próprio uso de telas na presença das crianças.
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