O artigo “Postergando a cateterização arterial no paciente grave com choque”, de Miller et al, fala sobre postergar a cateterização arterial em pacientes graves com choque. Embora o termo “postergar” esteja no título, o objetivo primário do estudo é comparar se pacientes graves com choque devem ter imediatamente uma artéria puncionada para monitorizar a pressão arterial média ou se eles podem ser mantidos com medidas de pressão arterial não-invasiva. Esse é um assunto controverso, porque o uso de cateter arterial é muito comum na terapia intensiva, principalmente para tratamento de pacientes com choque. Embora seja uma medida comum puncionar uma artéria para colocar um cateter, as evidências sobre a monitoração do paciente com choque com pressão não-invasiva ou com pressão invasiva não foi comparada de maneira recomendada, como num estudo clínico randomizado; estudos observacionais apontaram para uma maior gravidade dos pacientes que estão monitorados com pressão arterial invasiva e também uma mortalidade um pouco maior também nessa população. Porém, há viés de seleção quando você tem um estudo apenas observacional. Por isso, os autores tiveram o objetivo de fazer um estudo desenhado para avaliar o manuseio do choque sem a cateterização arterial precoce (até 24 horas) e comparar com a colocação de linha arterial no início do tratamento. O objetivo era saber se uma estratégia ou outra foi superior de acordo com o desfecho de mortalidade por qualquer causa no dia 28 após a inclusão.

Métodos
Foram incluídos pacientes adultos internados em UTI nas primeiras 24 horas de presença de falência circulatória aguda, ou seja, choque. Os critérios para o choque foram: a persistência de hipotensão, no caso pressão arterial sistólica menor que 90 mmHg ou pressão arterial média menor que 65 mmHg por mais de 15 minutos ou necessidade de uso imediato de vasopressor, conjuntamente com pelo menos um sinal de hipoperfusão tecidual. Os critérios de exclusão foram: o paciente não tinha valor de leitura de pressão arterial, quando era monitorizado por aparelho de pressão arterial não-invasiva ou quando ele estava com circulação extracorpórea, ou quando era administrado uma dose alta de vasopressor, por exemplo, noradrenalina com epinefrina em doses maiores que 2,5 microgramas/kg/min, ou trauma craniano grave, ou índice de massa corporal elevado maior que 40. O estudo foi randomizado na taxa de 1:1 em relação à estratégia não-invasiva e invasiva. A preferência é que os pacientes fossem incluídos quando as doses de vasopressor (noradrenalina ou adrenalina) fosse menor que 0.36 microgramas/kg/min, mas cerca de 2 terços dos pacientes alcançaram este patamar nas primeiras horas de inclusão.
O desfecho primário do estudo foi mortalidade em 28 dias. Secundariamente os desfechos foram mortalidade nos primeiros 7 dias, escore SOFA, aparecimento de novas disfunções orgânicas, número de dias livres de ventilação mecânica (VM), terapia renal substitutiva e tempo com necessidade de vasopressor do primeiro dia de inclusão até o 28º dia. Também foram anotados eventos adversos relacionados à medida de pressão, por exemplo: infecção ou hematoma causado pela punção arterial e dor ou desconforto relacionados à medida de pressão não-invasiva. Os autores também observaram se o cateter venoso era usado para coleta de exames laboratoriais nos pacientes que não tinham uma linha arterial invasiva, já que nesses pacientes a coleta de sangue é dificultada pela ausência de uma linha arterial.
O tamanho amostral era de em torno de 1000 pacientes para tentar demonstrar uma diferença menor que 2,5% na mortalidade em 28 dias entre os dois grupos; a hipótese é que a diferença de mortalidade seria pequena, sendo 25% na estratégia invasiva e 22,5% na estratégia não-invasiva.
Resultados
Os autores incluíram no total de 1.010 pacientes, que foram randomizados, ficando 506 pacientes no grupo não invasivo e 504 pacientes no grupo invasivo. Na análise com intenção de tratamento, acabou-se excluindo quatro pacientes, sendo dois em cada grupo. Em relação à intervenção e aderência ao protocolo, 13% dos pacientes no grupo não invasivo, já possuíam um cateter arterial invasivo implantado, 31 pacientes tiveram cateteres arteriais removidos de acordo com os protocolos de diretrizes. Outros 31 pacientes tiveram seus cateteres removidos mais tardiamente depois de 24 horas da randomização.
Um total de 74 pacientes no grupo não invasivo, ou seja 15%, acabaram tendo cateterização arterial invasiva numa média de 22 horas após a randomização. A maior parte desses doentes acabou usando cateter arterial invasivo porque eles tiveram algum critério de segurança pré-especificado para sua colocação. Os critérios de segurança foram os seguintes: inabilidade de monitorar a pressão arterial de maneira não-invasiva através de falta de onda de oximetria de pulso por falta de leitura da pressão arterial no monitor; necessidade absoluta de coleta de gases arteriais depois de cinco tentativas com falha de punção arterial; necessidade de terapia com oxigenação com membrana extracorpórea; necessidade de cirurgias de alto risco; e uso de vasopressor em dose elevada maior que 2,5 microgramas/kg/min.
Como já era esperado, os dois grupos de comparação estavam muito bem equilibrados. No momento da randomização, a idade média era em torno de 66 anos, com predomínio de homens em torno de 65 a 70%, com escore SOFA de 10 pontos; a maior parte dos doentes eram clínicos, sendo cerca de 94% da população. Mais da metade dos doentes tinha choque séptico e 11% tinham choque cardiogênico. Dois terços dos pacientes estavam usando VM invasiva no momento da randomização. A dose média de vasopressor antes da randomização era de 0,4 microgramas/kg/min de noradrenalina e 0,37 microgramas/kg/min de adrenalina no grupo da estratégia não-invasiva e as doses de vasopressores no grupo de estratégia invasiva eram semelhantes (adrenalina 0,4 e adrenalina 0,49).
Uma diferença entre os grupos foi que o número de coletas de exames de sangue por cateter venoso central foi de 215 por 1000 dias de UTI nos pacientes de estratégia não-invasiva, enquanto foi de 180 no grupo de estratégia invasiva. Ou seja, quando os pacientes eram monitorados por pressão arterial não-invasiva, havia maior necessidade da coleta de sangue pelo cateter venoso, embora também houvesse coleta de sangue pelo cateter venoso numa boa parte dos doentes com linha arterial invasiva.
O objetivo primário foi semelhante entre os dois grupos, já que 34% dos doentes na estratégia não-invasiva e 37% dos doentes na estratégia invasiva faleceram em até 28 dias depois da randomização, com uma diferença absoluta de três pontos percentuais apenas, com resultado não significativo.
Outra preocupação também era saber se os pacientes sem linha arterial invasiva acabavam mais graves depois de um tempo de observação, e para isso se monitorou o escore SOFA e a incidência de disfunções orgânicas: mas não houve diferença estatística nessas duas variáveis durante os primeiros 28 dias. A observação da mortalidade no 90o dia depois da randomização também mostrou que a estratégia não-invasiva e a estratégia invasiva tiveram uma diferença de risco absoluto muito pequeno de -1,7%, também não estatisticamente significativo. Outros desfechos secundários, como os dias livres de ventilação mecânica (VM), tratamento com vasopressor e terapia renal dialítica foram similares até o dia 28.
Cinco doentes, ou seja, 1% na estratégia não-invasiva e 41 pacientes, ou seja, 8% na estratégia invasiva tiveram alguma complicação de punção arterial, como hematomas ou hemorragias; a incidência de infecção de corrente sanguínea foi de 1 por 1000 dias de UTI no grupo não invasivo e 3 no grupo da estratégia invasiva, com redução estatisticamente significativa de quase 80% da incidência de bacteremia nos doentes que não tiveram linha arterial. No entanto, a incidência de tentativas de punção arterial para coleta de sangue foi bem maior no grupo de estratégia não-invasiva 742 versus 269 vezes. 13% dos pacientes da estratégia não-invasiva tiveram dor ou desconforto relacionados à presença do aparelho de monitoração de pressão arterial.
A saber, 14% dos doentes na estratégia invasiva alcançaram uma dose de vasopressor alta no primeiro dia, comparativamente aos 13% de pacientes também alcançando essa dose de noradrenalina ou adrenalina no grupo de estratégia não-invasiva. Neste subgrupo de pacientes com choque progressivamente pior, a mortalidade foi de 75% em 28 dias em ambos os grupos.
Limitações
Não houve como conduzir um estudo com cegamento, então pode ter havido um viés de condução no método de tratamento. A avaliação de dores e desconforto pode não ter sido completa porque muitos dos clientes estavam sedados. Pacientes na estratégia não-invasiva tiveram mais tentativas de punção arterial, um fato que sugere que a motorização com pressão arterial invasiva tem duplo objetivo: a medida da pressão com acurácia e a facilidade de coleta de exames laboratoriais. Não foi avaliada a satisfação e a carga de trabalho dos profissionais na UTI que pode ter sido maior nos pacientes do grupo não invasivo. A última limitação é que o trabalho avaliou poucos doentes cirúrgicos e com trauma, e nenhum dos pacientes tinham IMC maior que 40, fatos que limitam a generalização de resultados para essas populações específicas.
Conclusões
Embora a monitorização na pressão arterial invasiva seja considerada “standard” nos pacientes com choque, as medidas não-invasivas podem ser aceitas, embora tenha-se risco de redução de acurácia na leitura da pressão arterial. A acurácia e a precisão das medidas não-invasivas de pressão arterial podem ter sido suficientes para ajustes no tratamento do choque. Na maioria dos pacientes não houve diferença de mortalidade ou de desfechos secundários relacionados a uso de dispositivos ou suporte de funções orgânicas.
Mas antes de decidir sobre o uso de monitoramento da pressão arterial não-invasiva, o médico deve checar se há algum critério de exclusão desta estratégia, como citado nos métodos.
Autoria

André Japiassú
Doutor em Ciências pela Fiocruz. Mestre em Clínica Médica pela UFRJ. Especialista em Medicina Intensiva pela AMIB. Residência Médica em Medicina Intensiva pela UFRJ. Médico graduado pela UFRJ.
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