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Carreira12 setembro 2024

A jornada médica e a autocobrança

A profissão exige uma dedicação quase total, muitas vezes em detrimento das necessidades pessoais, ocasionando estresse e burnout
Por Lethícia Prado

No ano de 2010, enquanto o intervalo de uma das três turmas de um prestigiado cursinho preparatório de Medicina em Ribeirão Preto-SP avançava, eu conversava com meus colegas. O professor adentrou a sala e, com uma voz imponente, dirigiu-se aos 120 alunos presentes: “Bom dia! Enquanto vocês conversam, seus concorrentes estão estudando. Lembrem-se: não há vaga para todos.”

O ambiente silenciou instantaneamente, os alunos se acomodaram e a aula teve início. É nesse momento, ainda nas fases iniciais da nossa trajetória médica, que começa a ser implantada a mentalidade de trabalho incessante e a ideia de que a dedicação sem limites é a chave para o sucesso, evidenciando a necessidade da autocobrança.

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Jornada intensa na Medicina

Uma vez vencida a etapa do vestibular, os seis anos de faculdade sedimentam e fixam em toda a anatomia do médico em formação que não há tempo para descanso. Que as noites devem ser usadas, ao contrário do que diz toda a neurobiologia do aprendizado, para estudar mais, para revisar temas antes das provas. O mito de que dormir é perda de tempo torna-se prática comum.

Finda-se a faculdade, chega a vitória e conquista do CRM e, com ela, as demandas da residência médica. Aqueles que optam por seguir uma especialização são atropelados pela carga horária intensa acompanhada de várias cobranças. Os que decidem trabalhar inicialmente como generalistas, o fazem muitas vezes para juntar capital, o que prediz também altas cargas de trabalho com plantões de emergência.

Essa realidade revela que a carreira médica é construída em torno de trabalho árduo e sacrifício. Apesar de lidarmos com um dos aspectos mais profundos do sofrimento humano, a profissão exige uma dedicação quase total, muitas vezes em detrimento das necessidades pessoais.

 

Burnout

Alguns estudos que avaliaram a prevalência de desordens como burnout em médicos chegam a 42% de incidência, trazendo ainda relação entre esgotamento mental e sentimento de capacidade técnica insuficiente. Outro estudo, uma metanálise publicada em 2015 traz ainda índices de até 43% de depressão entre jovens médicos residentes.

Embora esses números sejam alarmantes, acabam se tornando uma parte normalizada da realidade.

Contudo, é importante refletir sobre o outro lado da moeda: quem é a pessoa por trás do médico, das longas jornadas e das demandas intensas? A jornada até o CRM é tão desgastante que frequentemente nos definimos exclusivamente pela profissão. Quando perguntados sobre quem somos, a resposta muitas vezes é: “Sou médico.” E essa resposta parece suficiente.

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Ser “apenas” médico

Mas qual a linha que separa o que fazemos do que somos? Será que é suficiente, perante a imensidão da vida, que o “ser” se restrinja a uma ocupação? Acredito pessoalmente que não.

Enquanto o contato diário com o sofrimento humano e a finitude deveriam embutir em nós uma expansão da consciência, o que presenciamos é uma contração. Um movimento em direção ao trabalho infinito e incansável, incentivado também por nossos próprios pares que estão, como nós, sendo levados a acreditar que essa é a forma correta de ser.

Escolhemos uma profissão extremamente exigente, e, paradoxalmente, ela deveria nos levar a valorizar mais a nossa vida pessoal, o lazer e as atividades que nos mantêm equilibrados e completos.

Esse texto tem como objetivo ser um movimento rio acima. Uma onda pequena, mas que só por existir pode reverberar contra a correnteza que nos afoga e atropela. Para que possamos ter o vislumbre de que é possível e necessário ser um bom médico não sendo “apenas” médico.

A reflexão sobre nossa profissão deve incluir a valorização da nossa própria vida e bem-estar, para que possamos continuar cuidando dos pacientes com a plenitude que eles merecem.

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Referências bibliográficas

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