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Carreira22 novembro 2024

Caso clínico: por trás de uma agressão, existe um paciente frágil

Senhora de 83 anos, internada pela progressão de um câncer de pulmão agressivo, apresenta comportamento antissocial. Como lidar?
Por Lethícia Prado

Na série especial “Histórias de Cuidado: Relacionamento médico-paciente”, compartilhamos relatos de médicos sobre casos que vivenciaram em sua rotina e como lidaram com cada situação de forma gentil e empática.

O objetivo é explorar a Medicina sob uma perspectiva mais subjetiva, revelando as nuances do cuidado com o paciente.

Boa leitura!

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Caso de hoje

Na enfermaria de oncologia, sou chamada para avaliar uma paciente com relato de agitação.

Senhora de 83 anos, está internada pela progressão de um câncer de pulmão agressivo, que agora invade átrio esquerdo e solta êmbolos tumorais, causando AITs de repetição.

Mesmo com a dramaticidade da situação e envolvimento de toda a equipe, não foram encontradas soluções objetivas para essa questão, a não ser o início de quimioterapia sistêmica.

Radioterapia sobre a lesão, barreira mecânica e até os novos e empolgantes milagres da radiointervenção foram descartados como opções após inúmeras discussões entre risco/benefício.

Quando as novidades da medicina não ajudam, voltamos com humildade à oncologia tradicional e aguardamos ansiosos que a quimioterapia iniciada haja ali na lesão problemática.

Com a estabilização clínica após novo episódio isquêmico, a paciente é transferida para o quarto e é nesse contexto que sou chamada.

Análise do quadro de agressividade

A queixa da enfermagem é clara: a paciente é agressiva, grosseira, destratou a equipe e brigou com a neta que a acompanhava.

A queixa da neta, mais clara ainda: “Ela me mandou embora e estou indo. Ela vai ficar sozinha para aprender.”

E o relato da dentista algo sugestivo: “Sei de qual paciente vocês estão falando. Ela estava com a prótese frouxa e eu a retirei. Mas ela apresentou muita resistência.”

Nesse momento, lembrei de algo que chamou minha atenção quando visitei a paciente no CTI. A prótese dentária estava realmente frouxa. Era possível ver a movimentação enquanto ela conversava e naquele momento dois pensamentos passaram por mim:

  • Como isso passou despercebido e a equipe do setor deixou ela ficar de prótese? Geralmente é uma das primeiras coisas que são retiradas;
  • Esses poucos dentes soltos devem ser realmente muito importantes para ela.

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Como lidar com esse paciente?

Entro no quarto já imaginando o que pode ter acontecido para tamanha revolta.

– Bom dia!

Ela me olha, vira o rosto, cruza os braços e franze a testa. Reflito por um instante que não importa a idade, todos voltamos a ser crianças quando devidamente contrariados. Insisto.

– Vem cá, me contaram que a senhora está muito brava. Me conta, o que aconteceu?

Ela começa a chorar. Em meio a soluços e lágrimas, alguns trechos chamam atenção.

– Tiraram minha prótese. Eu pedi, por favor, pra não tirar. Não gosto de ficar sem meus dentes, morro de vergonha.

Ela se acalma um pouco e continua:

– Minha neta estava aqui, pedi para ir embora. Minha filha fez má-criação comigo no telefone. Eles não entendem que eu estou doente.

Converso com ela, explico os riscos da broncoaspiração enquanto ela fixa o olhar na prótese colocada sobre a cômoda, a dois braços de distância, pra quem é capaz de sair da cama e agir de forma independente. Não era o caso.

Quando digo que ela está bonita, independente de prótese, ela chora mais, esconde o rosto. Diz que não suporta se ver daquela forma.

O único argumento válido foi o de que logo ela iria pra casa, talvez naquele dia ou no próximo, e a recapitulação de como ela tinha melhorado e progredido, como as outras coisas estavam caminhando bem.

Ela se acalmou. Agradeceu.

A questão não foi apenas a exigência de quase todo setor de internação de que próteses dentárias devem ser removidas, ainda mais se constatado risco ao paciente. A forma como as coisas são feitas geralmente tem muito mais impacto.

Conclusão

Em um contexto de doença e fragilidade extremas, às vezes nos apegamos ao pouco que temos, como a uma vaidade que ainda é importante e que, em última instância, nos torna tão humanos.

Ela foi de alta naquela mesma tarde e me contaram que uma hora após minha visita ela já estava com a prótese novamente.

Não sei quem foi. Mas a parte não médica minha agradeceu mentalmente a esse ser humano que burlou as regras para garantir um sorriso – algo solto –, mas muito verdadeiro.

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