Como tratar a anemia ferropênica?
A deficiência de ferro é a principal carência nutricional em todo o mundo, conforme corroborado pelos dados de prevalência abaixo apresentados:
A ferritina é o principal parâmetro dos estoques corporais de ferro, com ponto de corte para a ferropenia definido pela American Gastroenterological Association como inferior a 45 mg/dL. Contudo, em condições inflamatórias e na doença renal crônica, tendo em vista se tratar de uma proteína de fase aguda, pontos de corte mais elevados são recomendados, geralmente estabelecidos em 100 mg/dL.
Nos casos duvidosos, pode-se recorrer a ferramentas adicionais, que apontam para a ferropenia diante de redução do índice de saturação da transferrina (produto da divisão entre ferro sérico e capacidade total de ligação ao ferro), mais amplamente disponível, além do aumento do receptor solúvel da transferrina ou redução do conteúdo reticulocitário de hemoglobina.
O que é importante investigar diante da ferropenia documentada?
A ferropenia, uma vez identificada, demanda uma investigação ampla que deve incluir: inventário dietético; revisão do padrão menstrual entre mulheres em idade fértil; questionamento sobre perdas sanguíneas gastrointestinais (ocultas ou evidentes), infecção pelo H. pylori, parasitoses e síndrome de malabsorção.
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Qual deve ser a via inicial de reposição do ferro?
A via preferencial de reposição de ferro é a oral, com lugar de destaque para os sais ferrosos (sulfato ferroso – que contém 20% de ferro elementar, fumarato ferroso e gluconato ferroso) pela sua eficácia e baixo custo. Entretanto, a tolerância à reposição oral é limitada, sendo os principais efeitos colaterais a constipação intestinal (12%), náuseas (11%), diarreia (8%) e dor abdominal.
Destacamos que não há evidências definitivas de que um composto é superior ao outro. Apesar disso, alguns pacientes apresentam melhor tolerância ao bisglicinato ferroso, tentativa válida antes de prosseguir com a terapia parenteral quando a única justificativa é a má adaptação.
Qual a melhor posologia dos sais ferrosos orais?
Na sequência da ingestão de ferro oral, há um aumento da hepcidina sérica, que induz o fechamento da ferroportina dos enterócitos, fato que bloqueia a absorção de ferro por até 48 horas. Dessa forma, não há justificativa para a administração dos sais ferrosos em frequência superior a uma vez ao dia (65 mg de ferro elementar/dia). Além disso, estudos recentes, especialmente na população geriátrica, têm demonstrado maior eficácia e tolerância com a reposição em dias alternados.
Recomenda-se a ingestão do sal ferroso com o estômago vazio, preferencialmente em conjunto com a vitamina C (por exemplo, 80 mg de ácido ascórbico ou 500 mg se, por intolerância, for ingerido após a refeição), que previne a formação de compostos insolúveis e atua reduzindo o ferro férrico a ferroso, forma mais bem absorvida.
Lembramos que o consumo de chás ou café, por atuarem como potentes inibidores da absorção do ferro, deve ser evitado no período de 1 hora antes e após a ingestão do sal ferroso.
Quando devo considerar a reposição endovenosa de ferro?
As principais indicações de reposição parenteral de ferro são as seguintes: síndromes de malabsorção graves, doença inflamatória intestinal em atividade, pós-operatório de cirurgias bariátricas, síndrome IRIDA, má tolerância à tentativa de reposição oral ou a sua ineficácia (por exemplo, quando as perdas superam a capacidade absortiva) ou anemia ferropênica intensa e sintomática.
As formulações preferenciais são aquelas que permitem a reposição de todo o déficit de ferro em no máximo 1 ou 2 infusões (carboximaltose férrica, derisolmatose férrica, ferumoxitol ou ferro dextrano de baixo peso molecular). No sistema único de saúde brasileiro, entretanto, a maior disponibilidade é do sacarato de hidróxido ferro, que demanda múltiplas infusões, em dias alternados.
Cabem as seguintes ressalvas: a carboximaltose férrica tem o potencial de induzir hipofosfatemia, com possibilidade de fadiga e osteomalácia; enquanto o ferumoxitol atual como um agente de contraste supramagnético, devendo ser discutido com o radiologista sobre a viabilidade de uma eventual ressonância magnética nos 3 meses que sucedem a infusão.
Entre os pacientes com doença inflamatória intestinal, uma meta-análise envolvendo 5 RCTs e quase 700 pacientes, demonstrou superioridade da reposição endovenosa em relação à oral, com odds ratio (OR) da 1,57 para incremento da hemoglobina em pelo menos 2 g/dL e de 0,27 para eventos adversos motivadores de descontinuação do tratamento. Portanto, a via parenteral é a preferencial nesses casos, especialmente quando a hemoglobina estiver abaixo de 10 g/dL e o processo inflamatório estiver ativo (recomendações do ECCO). Caso contrário, pode-se tentar a reposição com formulações orais, com atenção à tolerância e eficácia. O mesmo se aplica para a ferropenia no pós-operatório da cirurgia bariátrica.
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Como calcular o déficit corporal total de ferro?
Os estoques corporais de ferro podem ser preditos pela seguinte fórmula:
Deficiência de ferro = [Peso (kg) x DHb¹ (g/dL) x 2,4] + Reservas de ferro²
¹DHb: diferença entre a hemoglobina atual e a desejada como alvo terapêutico.
² Reservas de ferro são, em média, 500 mg entre pacientes com mais de 35 kg e, abaixo dessa marca, equivalem a 15 mg/kg.
Devo me preocupar com as reações adversas ao ferro endovenoso?
Atualmente, as reações alérgicas verdadeiras são muito raras. Portanto, a maioria das reações são pseudoalérgicas, mediadas pela ativação do complemento, em um comportamento idiossincrático.
Diante de reações leves (1: 200 casos), a ideia é interromper a infusão e retomar em 15 minutos a uma taxa mais lenta. Reações graves (1: 200.000 casos), por sua vez, podem se beneficiar de corticoesteroides. Interessante apontar que a difenidramina, por ter eventos adversos semelhantes a reações medicamentosas (boca seca, taquicardia, sudorese, sonolência e hipotensão), deve ser evitada de forma rotineira.
A bula de algumas formulações traz a recomendação de que, na primeira infusão, seja administrado, inicialmente, 1 mL da solução, com observação dos dados vitais e eventuais eventos adversos, antes de prosseguir com a taxa habitual de infusão.
Uma regra importante: não omitir o tratamento da condição de base
O tratamento da anemia ferropênica nunca estará completo exclusivamente com a reposição de ferro.
As intervenções específicas são variáveis conforme o cenário: tratamento oncológico de malignidades do trato gastrointestinal; indução de remissão da atividade inflamatória das DIIs; betabloqueadores, TIPS ou transplante hepático na gastropatia hipertensiva portal; ligaduras com bandas elásticas ou aplicação de coagulação com plasma de argônio ou radiofrequência na ectasia vascular antral gástrica (GAVE); dieta isenta de glúten entre os celíacos; coagulação com plasma de argônio, terapia ablativa com radiofrequência, uso de esclerosantes ou hemoclipes nas angiectasias do intestino delgado, reservando as terapias farmacológicas adjuvantes (octreotide ou talidomida) para os casos refratários, que a despeito do maior potencial de eventos adversos, estão associadas à redução das internações e demandas transfusionais.
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Conclusão e Mensagens práticas
- A deficiência de ferro é a principal carência nutricional mundial, afetando até 40% das mulheres no período pré-menopausa.
- O ponto de corte de ferritina estabelecido para ferropenia pela American Gastroenterological Association são valores inferiores a 45 mg/dL; contudo, o valor se eleva para 100 mg/dL em condições inflamatórias.
- A investigação da ferropenia deve incluir aspectos dietéticos, absortivos, inflamatórios e infecciosos, bem como perdas sanguíneas crônicas pelo trato gastrointestinal ou genitourinário.
- O sulfato ferroso oral é o carro chefe da reposição por mesclar eficácia e baixo custo, devendo ser administrado uma vez ao dia ou em dias alternados, preferencialmente com o estômago vazio e em conjunto com o ácido ascórbico.
- As principais indicações de ferro endovenoso incluem síndromes malabsortivas, doença inflamatória intestinal em atividade, pós-operatório de cirurgias bariátricas, IRIDA, intolerância ou ineficácia da reposição oral.
- As melhores formulações parenterais são aquelas que permitem a reposição de todo o déficit em 1 ou 2 infusões.
- As reações alérgicas verdadeiras ao ferro parenteral são raras na atualidade.
- Devemos interpretar a anemia ferropênica mais como um sintoma do que um problema independente – portanto, é fundamental sempre buscar o tratamento etiológico específico da condição subjacente
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