Doença hepática associada ao álcool
A doença hepática associada ao álcool (DHA) apresenta-se sob diferentes espectros e, no geral, coexiste com o transtorno por uso do álcool.
A doença hepática associada ao álcool é a uma das principais causas de doença hepática avançada em todo o mundo. Na última década, houve aumento considerável do consumo de álcool, tornando-se ainda mais relevante o estudo desse tema.
O consumo nocivo de álcool pode ser definido como:
- Consumo de três ou mais doses/dia ou 21 ou mais doses por semana em homens;
- Consumo de duas ou mais doses/dia ou 14 ou mais doses por semana em mulheres.
A doença hepática associada ao álcool (DHA) apresenta-se sob diferentes espectros e, no geral, coexiste com o transtorno por uso do álcool e requer tratamento multidisciplinar, visto que a base do tratamento em qualquer estágio da doença é a abstinência sustentada
A hepatite alcoólica é uma entidade clínica distinta no espectro da DHA, que pode cursar de forma grave, atingindo taxas de mortalidade de 20 a 50%. Nesses casos, corticoide melhora sobrevida em um mês.
Recentemente, o American Journal of Gastroenterology publicou suas novas diretrizes sobre o tema, que serão aqui discutidas.
Epidemiologia
A DHA é a principal causa de mortalidade por doença hepática avançada nos EUA, onde observa-se um aumento da incidência da DHA principalmente em jovens, mulheres e minorias (índios e hispânicos).
A prevalência de DHA vem aumentando desde 2014, de forma acelerada, culminando em importante problema de saúde pública. Esse aumento sofreu impacto pela pandemia, quando houve aumento de consumo de álcool em 14%, levando a aumento de mortalidade por transtorno por uso de álcool em até 24,8% em 2020.
A DHA é uma doença negligenciada, pois apesar de ser importante causa de doença hepática recebe apenas cerca de 5% do financiamento médio para investigação.
Fatores de risco
O consumo nocivo de álcool é o principal fator de risco para DHA. Outros fatores de risco importantes são:
- Variantes genéticas da α-1 antitripsina, PNPLA3, TM6SF2 e MBOAT7;
- Tabagismo;
- Síndrome metabólica, em especial, obesidade e diabetes;
- Cirurgia metabólica (Bypass);
- Hepatites virais crônicas (HBV, HCV)
Diagnóstico e tratamento
Transtorno por uso de álcool
Idealmente, deve-se realizar a triagem de transtorno por uso do álcool em todas as consultas, de forma imparcial, utilizando-se de ferramentas de triagem.
O teste de identificação de transtorno por uso de álcool (AUDIT) é uma boa estratégia, sendo um questionário auto-relatado pelo paciente, contando com 10 itens. O AUDIT-c é uma versão mais curta, contando com 3 perguntas, sendo mais fácil de usar na prática.
Além disso, existem biomarcadores indiretos do álcool que podem ser utilizados para avaliação complementar, tais como aumento da gama-GT e do volume corpuscular médio (VCM). Biomarcadores diretos, como concentração de álcool no sangue são úteis, porém pouco disponíveis na prática.
Uma entrevista motivacional é recomendada nesses casos. Trata-se de uma estratégia de conversa, sem julgamentos, a fim de conscientizar o paciente sobre os problemas, riscos e consequências relacionados ao hábito.
Em relação ao tratamento medicamentoso em pacientes com DHA compensada e transtorno por uso de álcool, recomeda-se o uso de alguma dessas substâncias: baclofeno; acamprosato;naltrexona; gabapentina ou topiramato, devendo a decisão ser individualizada. O dissulfiram encontra-se contra-indicado atualmente, visto que apresenta metabolização hepática exclusiva e potencial hepatotoxicidade.
Deve-se ter atenção à ocorrência da síndrome da abstinência alcoólica (SAA) em pacientes com interrupção ou redução abrupta da ingesta de álcool. A SAA pode ser dividida em leve/moderada a grave.
- SAA leve/moderada: Sintomas iniciam entre 6-24 horas da última dose de bebida, incluindo náuseas/vômitos, hipertensão, taquicardia, tremores, hiperreflexia, irritabilidade, ansiedade e dor de cabeça.
- SAA grave: delirium tremens; convulsões generalizadas; coma; PCR; morte.
O tratamento de escolha inclui os benzodiazepínicos. Os de ação prolongada (ex: diazepam) protegem contra convulsões. Os de ação curta (ex lorazepam) são mais seguros para pacientes com insuficiência hepáticas. Esses medicamentos devem ser utilizados com cautela, pois podem precipitar e agravar a encefalopatia hepática.
Espectros da doença hepática associada ao álcool
Indivíduos assintomáticos com suspeita de DHA devem ser avaliados quanto à fibrose hepática, através de testes não invasivos, como FIB-4 e elastografia hepática.
O FIB-4 utiliza dados de idade, AST, ALT e plaquetas. Apresenta alta sensibilidade (80-90%) e baixa especificidade (60-80%) para avaliação de fibrose hepática. A elastografia hepática não tem valores de corte tão bem validados quanto para outras etiologias, mas sabe-se que valores acima de 12 kPa estão associados a doença hepática crônica avançada. Deve-se recordar que níveis aumentados de AST e ALT (especialmente acima de 200 u/l), bilirrubina sérica elevada e consumo ativo de álcool podem confundir o resultado desse exame.
Como a DHA é assintomática durante muitos anos, apresentando sintomas apenas quando em estágios avançados, torna-se necessário seu rastreamento entre pacientes com uso nocivo de álcool.
Na presença de uso nocivo de álcool, com DHA assintomática suspeita é importante avaliação não invasiva de fibrose ( FIB4 e/ou elastografia). E nos casos de DHA sintomática (cirrose descompensada ou hepatite alcoólica) deve-se lembrar de rastrear transtorno por uso de álcool através de questionários como AUDIT.
O acompanhamento multidisciplinar desses pacientes incluindo clínico, hepatologista, psiquiatra, psicólogo, nutricionista e assistente social tende a ter melhores resultados.
Os pacientes com cirrose hepática devem ser manejados de forma semelhante à cirrose por outras etiologias, devendo inclusive considerar encaminhamento ao transplante hepático quando indicado.
A hepatite alcoólica pode ser diagnosticada através de critérios clínicos (NIAAA).
- Diagnóstico provável: Icterícia iniciada em pacientes com consumo pesado de álcool (> 50g/dia por pelo menos seis meses) nos últimos 60 dias, com bilirrubina total sérica maior que 3mg/dl, aumento de AST (50-400U/l), com razão de AST/ALT > 1,5 e sem fatores confundidores.
- Diagnóstico possível: Apresenta critérios clínicos, porém diagnóstico incerto devido a presença de fatores confundidores e/ou história incerta de consumo de álcool.
- Diagnóstico definitivo: Confirmação histológica, com achados sugestivos como esteatose, esteatohepatite, balonização de hepatócitos, colestase canalicular e presença de corpúsculos de Mallory. A biópsia hepática é um procedimento invasivo, com risco de sangramento especialmente em pacientes ictéricos e com INR alargado, devendo ser reservada para casos de dúvida diagnóstica.
Feito o diagnóstico de HA, deve-se estimar a gravidade. Classicamente, utiliza-se o Índice de função discriminante de Maddrey (IFD). Quando valor maior ou igual a 32 denota gravidade. Contudo, o escore MELD > 20 também pode ser usado como índice prognóstico, avaliando gravidade e risco de mortalidade e orientando uso de corticoterapia.
Em caso de hospitalização por HA moderada a grave, não existe recomendação rotineira de antibioticoprofilaxia, visto que estudos avaliando essa prática não se mostraram promissores em termos de benefício na mortalidade em pacientes com HA.
O suporte nutricional é de extrema importância nesses pacientes, visto que a maioria já apresentava sinais de desnutrição prévia. Recomenda-se meta de ingestão calórica de 35 kcal/kg/d com 1,2–1,5 g/kg/d de proteína. Suplementação nutricional de preferência por via oral e enteral deve ser oferecido aos pacientes com ingesta calórica <21 kcal/kg/d. Além disso, deve-se suplementar vitaminas do complexo B (em especial tiamina e cobalamina) e zinco.
O tratamento com prednisona ou prednisolona 40 mg/dia deve ser realizado em pacientes com MELD maior que 20 ou IFD maior ou igual a 32, na ausência de contra-indicação (infecção ativa, incluindo infecção por hepatite B sem tratamento; diabetes descompensado;hemorragia digestiva e injúria renal grave). A corticoterapia reduz mortalidade em 28 dias, com benefício máximo para pacientes com MELD variando entre 25 a 39 pontos, sendo arriscada para pacietes com MELD superior a 50.
O tratamento com corticosteroides deve ser reavaliado com escore Lille no dia 7 ou dia 4, devendo ser descontinuado em caso de pontuação >0,45 (não respondedor).
Existem outros tratamentos promissores para a HA, como o uso de fator de crescimento de colônias de granulócitos (granulokine), todavia ainda faltam dados para recomendação. A N-acetilcisteína intravenosa pode ser usada em combinação com os corticoesteroides na HA grave.
Transplante hepático precoce pode ser considerado em pacientes com HA grave não responsiva a corticosesteroides. A seleção dos pacientes deve envolver uma avaliação psicossocial abrangente, com especialistas em dependência e serviço social. Contudo, essa indicação depende ainda da legislação de cada país.
Leia também: Antibioticoprofilaxia na hepatite alcoólica?
Mensagens práticas
A doença hepática associada ao álcool é uma condição que caminha junto com o transtorno por uso de álcool, devendo dessa forma ser abordada de forma multidisciplinar. O consumo nocivo de álcool vem aumentando consideravelmente, principalmente após a pandemia e a diferença entre os gêneros vem decaindo. Dessa forma, cabe aos médicos aproveitarem as consultas médicas para abordar esse consumo, identificando através de alguns questionários simples como o AUDIT-c aqueles pacientes sob o risco e dessa forma avaliando também a saúde do fígado, utilizando-se de marcadores não invasivos.
Além do mais, é importante que os médicos generalistas saibam reconhecer o quadro de hepatite alcoólica, visto que trata-se de uma condição com potencial gravidade que chega às unidades de emergência e/ou atenção básica.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.