Gastroenterologia13 março 2024
O que todo médico precisa saber sobre cirrose hepática descompensada?
A cirrose hepática descompensada cursa com disfunção de síntese de fatores de coagulação e imunoglobulinas, predispondo à coagulopatias.
A cirrose hepática descompensada é uma condição desafiadora e frequentemente presente nas unidades de terapia intensiva. Trata-se de doença multissistêmica, englobando falência de outros órgãos e sistemas, além de imunodeficiência e desnutrição.
Dessa forma, é importante a revisão desse tema, a fim de melhorar o atendimento desses pacientes.
Veja também: Quando indicar e quando não indicar a albumina?
Na presença de paciente com cirrose hepática descompensada, deve-se buscar fator desencadeante, tais como: progressão da doença hepática de base, hipotensão, infecção, carcinoma hepatocelular, trombose de veia porta.
A cirrose hepática descompensada cursa com disfunção de síntese de fatores de coagulação e imunoglobulinas, predispondo à coagulopatias e favorecendo surgimento de infecções.
A hipertensão portal pode cursar com complicações como:
O uso de escores prognósticos é de grande valia a fim de estimar gravidade, sendo os mais usados:
Epidemiologia, etiologia e fisiopatologia
A cirrose hepática é o estágio mais avançado da fibrose hepática, resultante de injúria crônica ao fígado. Essa condição cursa com insuficiência hepática e hipertensão portal. A cirrose hepática descompensada cursa com complicações, como: hemorragia digestiva alta varicosa, ascite, encefalopatia hepática, icterícia e ACLF (acute-on-chronic liver failure). Trata-se de causa frequente de admissão em leito de terapia intensiva, estando associada a taxas de mortalidade em torno de 50%. As etiologias de cirrose hepática são variáveis e estão dispostas na tabela a seguir:Droga | Álcool |
Infeccioso | Hepatite B e C |
Metabólico | Obesidade, diabetes (NASH) |
Genético | Doença de Wilson, hemocromatose hereditária, deficiência de alfa-1-antitripsina |
Autoimune | Hepatite autoimune, colangite biliar primária, colangite esclerosante primária |
Vascular | Síndrome de Budd-Chiari |
Biliar | Cirrose biliar secundária |
- Varizes esofagogástricas e hemorragia digestiva alta varicosa;
- Ascite e peritonite bacteriana espontânea (PBE);
- Disfunção circulatória, que pode predispor à síndrome hepatorrenal;
- Dificuldade na eliminação de metabólitos tóxicos, favorecendo o surgimento de encefalopatia hepática.
ETIOLOGIA |
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MONITORAMENTO/FUNÇÃO HEPÁTICA |
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RASTREIO DE DOENÇA HEPÁTICA AVANÇADA |
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RASTREIO DE CARCINOMA HEPATOCELULAR |
|
- MELD (cálculo que leva em conta valores de bilirrubina, INR e creatinina);
- MELD-NA (cálculo que leva em conta valores de bilirrubina, INR, creatinina e sódio);
- Child-Pugh score: leva em conta valores de bilirrubina, TAP, albumina, além da presença de ascite e encefalopatia hepática.
Manejo das complicações
Hemorragia digestiva alta varicosa (HDAV)
- Acomete cerca de 25–40% dos pacientes cirróticos;
- Taxa de mortalidade de 10–30% a cada episódio de HDAv;
- Medidas gerais:
- Ressuscitação volêmica com solução cristaloide, visando PAM > 65 mmHg;
- Hemotransfusão com cautela: alvo de HB entre 7g/dl e 8 g/dl; não fazer plasma fresco de rotina; considerar transfusão de plaquetas quando inferior a 50.000;
- Rastreio infeccioso (EAS, urocultura, radiografia de tórax, paracentese com análise do líquido ascítico a fim de avaliar PBE); antibioticoprofilaxia, na ausência de achados de infecção ativa: ceftriaxona 1g, uma vez ao dia;
- Tratamento medicamentoso: vasoconstrictores esplâncicos, como terlipressina e análogos de somatostatina (octreotide) assim que houver suspeita de HDAv e manter até cinco dias após endoscopia;
- Tratamento endoscópico: deve ser realizado após estabilização hemodinâmica, de preferência em, até, 12 horas da admissão hospitalar;
- Deve-se considerar proteção de vias aéreas no caso de sangramento maciço, encefalopatia hepática graus III ou IV e incapacidade de manter ventilação/oxigenação adequada;
- Ligadura elástica (LEVE) é o tratamento de escolha para varizes esofágicas e terapia com cianoacrilato é o tratamento de escolha para varizes gástricas ou ectópicas;
- O balão de Sengstaken – Blakemore pode ser usado como terapia de ponte em hemorragias não controladas;
- TIPS (Shunt portossistêmico intra-hepático transjugular):
- Considerar nos casos de HDAv refratário/recorrente.
- TIPS precoce (dentro de 72 horas) pode melhorar a mortalidade em pacientes com alto risco de ressangramento
- Profilaxia secundária
- Deve ser realizada com tratamento endoscópico (LEVE) associado à terapia farmacológica (beta-bloqueadores não seletivos)
Ascite
- Complicação mais comum da cirrose hepática, apresentando impacto no prognóstico e na qualidade de vida;
- A paracentese diagnóstica deve ser realizada sempre que:
- Primeiro episódio de ascite;
- Internação hospitalar em paciente com ascite
- Descompensação da cirrose hepática.
- A ascite da cirrose hepática é transudativa, apresentando gradiente albumina soro-ascite (GASA) maior ou igual a 1,1;
- Tratamento
- Restrição de sódio: até 2g/dia
- Diureticoterapia: espironolactona (100-400 mg/dia) ± furosemida (40-160 mg/dia)
- Paracentese de alívio, se ascite tensa ou refratária, com reposição de albumina sempre que retirados cinco ou mais litros de ascite, a fim de evitar disfunção circulatória pós-paracentese
- TIPS: considerar em pacientes com ascite refratária, como ponte ao transplante hepático
Sepse
- Os principais tipos de infecção na cirrose hepática são: infecção do trato urinário (ITU), infecções respiratórias inferiores (pneumonia) e peritonite bacteriana espontânea (PBE);
- Pacientes cirróticos são mais propensos a desenvolver sepse e choque séptico, dessa forma o reconhecimento precoce é muito importante, considerando rastreio infeccioso sempre que houver descompensação da cirrose (HDAv, surgimento ou piora da ascite, encefalopatia hepática ou lesão renal aguda)
Peritonite bacteriana espontânea (PBE)
- 10% dos pacientes cirróticos internados com ascite desenvolvem PBE;
- Reconhecimento e tratamento precoce reduzem mortalidade;
- O diagnóstico é feito com contagem de polimorfonucleares do líquido ascítico maior que 250/mm³
- O principal germe envolvido na PBE do paciente cirrótico é a E. coli
- Infecção comunitária pode ser tratada com cefalosporinas de 3ª geração (ceftriaxone);
- Infecção relacionada aos cuidados de saúde podem ser tratadas com antibióticos de amplo espectro a depender do perfil de resistência local (Ex: piperacilina-tazobactam, carbapenêmicos);
- Deve-se instituir profilaxia secundária para PBE com norfloxacino 400 mg/dia.
Disfunção renal
- Cerca de 60% dos pacientes cirróticos internados na UTI apresentarão disfunção renal;
- A disfunção renal aguda pode ser do tipo pré-renal (hipovolemia, infecção), renal intrínseca (NTA, medicamentos, doença renal parenquimatosa) e pós-renal;
- Síndrome hepatorrenal
- Condição especial, associada à hipertensão portal, na qual a vasodilatação esplâncnica leva à uma redução do volume circulante efetivo, cursando com ativação dos sistemas nervoso simpático e renina angiotensina aldosterona, cursando com vasoconstricção renal intensa;
- Diagnóstico: paciente com critérios de lesão renal aguda, sem resposta à expansão volêmica com albumina 1g/kg/dia durante 48 horas e sem outra causa aparente de disfunção renal;
- Tratamento: vasoconstrictor esplâncnico (terlipressina) associado à albumina;
- Tratamento definitivo: transplante hepático.
Encefalopatia hepática
- Ocorre em 30-40% dos pacientes com cirrose hepática, apresentando alta taxa de recorrência;
- Apresenta amplo espectro de manifestações neuropsiquiátricas, sendo classicamente classificada através da escala de West Haven:
GRAU | MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS |
I | Ansiedade/euforia; distúrbio do sono (alteração do ciclo sono-vigília); atenção reduzida |
II | Achados do grau I + Letargia/apatia; desorientação temporal; mudança de comportamento; flapping |
III | Sonolência; desorientação grave; confuso; alterações graves de comportamento |
IV | Coma |
- Deve-se pesquisar e tratar fatores precipitantes, como: infecção, hemorragia gastrointestinal, desidratação, constipação, distúrbios eletrolíticos e medicamentos (benzodiazepínicos, opioides).
- Tratamento: lactulose (alvo são 2 a 3 evacuações amolecidas ao dia) ou rifaximina 550 mg, 2 vezes ao dia. Considerar proteção de vias aéreas nas encefalopatias grau III e IV.
- Pesquisar presença de shunt portossistêmico com estudos de imagem contrastados, especialmente em casos de encefalopatia persistente sem outros sinais de progressão da doença hepática.
Síndrome hepatopulmonar
- Deve ser suspeitada na presença de platipnéia (falta de ar em ortostase) e ortodeoxia (dessaturação arterial em ortostase).
- Diagnóstico: presença de hipoxemia na gasometria arterial (PaO2 menor que 60 mmHg em ar ambiente) em pacientes com hipertensão portal com presença de vasodilatação intrapulmonar comprovada por ecocardiograma com microbolhas;
- Tratamento: suporte; transplante hepático
Hipertensão portopulmonar
- Ocorre em 5% a 8% dos pacientes com cirrose
- Definida como pressão média da artéria pulmonar (PAPm) >25 mmHg em cirróticos, sem outras causas de hipertensão pulmonar
- Tratamento
- Vasodilatadores (ex: sildenafil) nos casos moderados a grave;
- Transplante hepático;
- Hipertensão portopulmonar grave (PAPm >50 mmHg) é uma contraindicação ao transplante.
Cuidados intensivos na cirrose hepática
- Pacientes com cirrose hepática descompensada são considerados de alto risco cirúrgico;
- Deve-se ter atenção ao manejo hemodinâmico, visto que esses pacientes tendem à hipotensão (baixa resistência vascular periférica e elevado débito cardíaco), devendo-se ter cautela com a reposição volêmica.
- Há desequilíbrio entre fatores pró e anticoagulantes, devendo-se avaliar a coagulação, preferencialmente, através do tromboelastograma
- É necessário cautela no uso de agentes anestésicos, analgésicos e bloqueadores neuromusculares com metabolismo hepático,
- Deve-se pesquisar e corrigir distúrbios hidroeletrolíticos, sendo os mais comuns: hiponatremia, hipo/hipercalemia e hipomagnesemia
- Cuidados com hipoglicemia devem ser redobrados
Transplante hepático
- Todo paciente com cirrose hepática descompensada deve ser avaliado para transplante hepático;
- Pacientes com abuso de álcool devem estar há, pelo menos, seis meses de abstinência.
Mensagem prática
A cirrose hepática é uma condição frequente de admissão hospitalar e em unidades de terapia intensiva. Dessa forma, os médicos que cuidam desses pacientes precisam estar familiarizados com o reconhecimento e manejo das principais complicações dessa condição e estarem atentos às particularidades dos cuidados intensivos nos pacientes hepatopatas.Anúncio
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