Hiperferritinemia metabólica
A hiperferritinemia é uma alteração laboratorial de alta prevalência, acometendo até 20% da população dita saudável, mas que guarda relação estreita com a síndrome metabólica (SM). Nesse cenário, tendo-se excluídos os principais diagnósticos diferenciais, pode ser tratada como hiperferritinemia metabólica (HFM).
O que é a ferritina e como ela se associa à síndrome metabólica?
A ferritina é a principal proteína de armazenamento intracelular de ferro, sendo a sua produção hepática.
O incremento no cenário da SM foi descrito primariamente em 1998, e desde então tem sido evidenciada a sua relação com o incremento das seguintes condições:
- Resistência insulínica (RI) e progressão do diabetes mellitus do tipo 2 (DM2);
- Doença hepática esteatótica relacionada à disfunção metabólica (MASLD);
- Obesidade;
- Dislipidemia;
- Progressão de nefropatia;
- Doenças cardiovasculares.
A fisiopatologia, ainda sob elucidação, parece ser mediada pelo excesso de ácidos graxos e a consequente lipotoxicidade, com incremento dos radicais livres de oxigênio e ativação de vias de sinalização inflamatórias, que acabam por aumentar a expressão de hepcidina e, por conseguinte, da ferritina. A sobrecarga de ferro atua também no tecido adiposo, contrapondo-se a secreção de peptídeos regulatórios do apetite, como a adiponectina e leptina, agravando a RI e a obesidade.
O papel específico da ferritina na promoção de inflamação e fibrose ainda é incerto, podendo representar apenas um epifenômeno ou, de fato, um mediador patológico propriamente dito e merecedor de esforços terapêuticos direcionados.
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Quais os seus principais diagnósticos diferenciais?
Um passo importante na abordagem é diferenciar a HFM das causas primárias de acúmulo de ferro, conforme sintetizado na tabela abaixo:
Componentes |
Hiperferritinemia metabólica |
Hemocromatose |
Distribuição hepática de ferro (biópsia hepática) |
Macrófagos (células de Kupffer) |
Hepatócitos (parenquimatosa) |
Montante de sobrecarga de ferro |
Normal ou moderado |
Geralmente intenso |
Índice de saturação da transferrina |
Frequentemente normal |
Habitualmente elevado (≥ 45%) |
Hepcidina |
Preservada ou aumentada |
Reduzida |
Lesão orgânica progressiva |
Improvável |
Frequente |
Indicação de terapia depletora de ferro |
Ausente |
Presente |
Tolerância ao programa seriado de flebotomia (16 sessões) |
Frequentemente tornam-se anêmicos |
Evolução com anemia é incomum |
Faz-se necessária ainda a consideração de outros diagnósticos diferenciais, entre os quais destacamos:
- Condições inflamatórias agudas e crônicas (infecções, sepse, doenças autoimunes, doença renal crônica avançada) – afinal, é um marcador de fase aguda de inflamação;
- Uso abusivo de álcool no último semestre (> 60 e 40 g/dia para homens e mulheres, respectivamente);
- Doenças hepáticas agudas e crônicas de outras etiologias, com a hepatite C, hepatite autoimune e doença de Wilson;
- Malignidades sólidas e hematológicas;
- Síndromes mielodisplásicas;
- Anemias hemolíticas hereditárias.
Como identificar a sobrecarga de ferro na imagem?
A ferritina, embora tenha uma boa correlação com a sobrecarga de ferro, apresenta especificidade limitada.
O acúmulo hepático de ferro pode ser inferido pela presença de esteatose à ultrassonografia e tomografia de abdome, métodos mais acessíveis, embora de menor acurácia.
A disponibilidade crescente de métodos não invasivos e acurados de quantificação dos estoques teciduais de ferro, como a ressonância magnética (RM), tem somado à cinética laboratorial do ferro e aos outros métodos de imagem, dispensado, na maioria dos casos, a biópsia hepática.
Como é feita a quantificação de ferro à RM?
A RM baseia-se na propriedade magnética do núcleo do próton de hidrogênio (spin – um movimento cônico, semelhante ao desenvolvido por um peão em movimento), que pode absorver energia de pulsos de radiofrequência.
A taxa de dissipação dessa energia gera um sinal que é medido para produzir uma imagem. Os parâmetros usados para descrever esse processo são chamados de tempos de relaxação, sendo o T2 e T2* particularmente interessantes, porque encontram-se diminuídos na presença de moléculas superparamagnéticas, como a ferritina e hemossiderina, que contêm ferro.
Assim, a RM detecta, indiretamente, o ferro no fígado, através de sua influência na aceleração do decaimento do sinal.
Veja também: Hiperferritinemia: diagnóstico e tratamento
Qual é a proposta de estadiamento?
Tendo-se por base o espectro amplo do metabolismo do ferro entre os indivíduos com disfunção metabólica, um sistema de estadiamento foi proposto em 2023 por Luca Valenti e colaboradores.
O consenso multidisciplinar envolveu profissionais da hepatologia, hematologia, endocrinologia e radiologia, e os principais pontos sintetizamos na sequência.
Fatores |
Normal |
Os estágios da hiperferritinemia metabólica | ||
1 |
2 |
3 (DIOS) | ||
Ferritina (ng/mL) |
< 300 (homens) < 200 (mulheres) |
< 550 |
550 – 1.000 |
> 1.000 |
RM (R2* s-1) |
< 70s |
<70s < 36 μmol/g |
70-140s 36-74 μmol/g |
> 140s > 74 μmol/g |
Estoques de ferro |
Normais |
Normais |
Aumentados |
Muito aumentados |
Lesão orgânica relacionada* |
Ausente |
Geralmente ausente |
Rara |
Presente |
DIOS: Dysmetabolic iron overload syndrome. *As lesões orgânicas mais proeminentes associadas à sobrecarga de ferro são a pancreática (resistência insulínica), cardiovascular, renal e hepática.
Lembramos que o sistema de estadiamento destacado é, nesse momento, propositivo, com o intuito principal de guiar estudos subsequentes, sendo necessária a validação prospectiva dos mesmos antes de sua adoção prática mais ampla.
Como manejá-la?
Idealmente, o estadiamento deve ser realizado somente após pelo menos 3 meses de aconselhamento de mudanças do estilo de vida, sumarizadas na sequência:
- Mudanças dietéticas, com redução do consumo calórico, de frutose, sal e alimentos processados;
- Incentivo à prática de atividade física;
- Emagrecimento;
- Moderação do consumo de álcool;
- Otimização terapêutica das comorbidades associadas.
Há espaço para terapia depletora de ferro?
A flebotomia, uma terapia bem definida no manejo dos pacientes com hemocromatose, tem sido especulada na HFM, capaz de remover aproximadamente 250 mg de ferro para cada 450 mL de sangue total.
Considera-se que a sobrecarga de ferro atue como um fator de risco modificável na síndrome metabólica.
Alguns estudos de caso-controle sugerem que a flebotomia poderia mitigar a RI na presença de MASLD e SM, além de minimizar a lesão hepática, documentada por meio de decaimento das enzimas hepáticas e melhora histológica.
Saiba mais: Como tratar a anemia ferropênica?
Por sua vez, em estudos controlados randomizados (RCTs), a estratégia não se associou à melhora da RI em curto prazo, embora tenha sido demonstrada a redução das enzimas hepáticas: AST e ALT.
Uma metanálise pequena, com alta heterogeneidade, concluiu que o benefício da terapia depletora seria mínimo, sem vantagens relativas às mudanças isoladas do estilo de vida em termos de RI e histologia.
Dessa forma, fora do cenário da pesquisa clínica, a flebotomia somente deve ser considerada, caso a caso, na presença de sobrecarga hepática de ferro confirmada e intensa, quando condicionando esteato-hepatite ou fibrose clinicamente significativa e irresponsiva aos tratamentos. Em relação à doação de sangue, não há uma contraindicação de fazê-la diante de HFM, desde que se tenha os fatores de risco cardiovasculares bem controlados.
Conclusão e Mensagens práticas
- A hiperferritinemia metabólica (HFM) é uma condição de alta prevalência, estando associada à síndrome metabólica (SM) e suas complicações. O papel da ferritina na gênese de lesão orgânica ainda é indefinido, podendo representar apenas um epifenômeno. O sistema de estadiamento proposto leva em conta dados laboratoriais (ferritina), imaginológicos (RM pautado no tempo de relaxação) e avaliação de funções orgânicas, com destaque para a resistência insulínica, hepatopatia, nefropatia e doenças cardiovasculares. Afastados os principais diagnósticos diferenciais, a terapia deve se basear em mudanças do estilo de vida e otimização do controle das comorbidades. A flebotomia, robusta no manejo da hemocromatose, deve ser vista apenas uma conduta de exceção na HFM, devendo-se ser avaliada individualmente e, principalmente, no escopo da pesquisa clínica.
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