A migrânea é definida como cefaleia com duração entre 4-72 horas, com presença de pelo menos duas das seguintes características: localização unilateral, qualidade pulsátil, intensidade moderada-grave e incapacitante ou piora da dor durante esforço físico. Além disso, pode ser associada a náusea e vômito ou a fotofobia e fonofobia.1 A crise migranosa é composta por quatro fases que não necessariamente estarão sempre presentes nos indivíduos acometidos: pródromo, aura, fase de cefaleia e pósdromo.2 A fisiopatologia dessa condição é parcialmente esclarecida. É reconhecido um papel de participação do sistema trigeminovascular, hipotalâmico, cortical (através da depressão alastrante cortical) e tronco encefálico.3 No caso de mulheres, a influência hormonal aparenta impactar nas crises migranosas, principalmente considerando mecanismos como a redução abrupta de estrogênio e a liberação de prostaglandinas.4
Condição epidemiologicamente predominante no sexo feminino, com estimativa de prevalência de 20,3 milhões de mulheres entre 15 e 49 anos, a migrânea é a segunda principal causa de incapacidade global.5 Investir no seu tratamento é, portanto, fundamental para reduzir a carga provocada por essa doença na sociedade.5
Em mulheres, a terapia da migrânea envolve diversas peculiaridades que estão presentes durante o ciclo de sua vida, seja durante a idade fértil, o contexto gestacional e o período próximo à menopausa. Portanto, conhecer essas particularidades é essencial no momento de ofertar uma assistência à saúde dessa mulher de modo mais eficaz e seguro.6
Migrânea na mulher em idade fértil
Há dois possíveis diagnósticos para migrâneas no período menstrual, segundo a International Classification of Headache Disorders Third Edition (ICHD-3):1,6
- Migrânea menstrual pura: Distúrbio raro, presente em 10% das mulheres com crises migranosas limitadas na janela perimenstrual (-2 a + 3 dias do dia inicial da menstruação).
- Migrânea relacionada à menstruação: Distúrbio mais comum, em torno de 50% das mulheres com migrânea, que experimentam as crises migranosas tanto na janela perimenstrual quanto em outros períodos do ciclo, porém com exacerbação da frequência e/ou intensidade no período.
Para realizar esses dois diagnósticos mencionados acima, é necessário que as crises migranosas tenham ocorrido pelo menos em dois dos últimos três ciclos menstruais.
As crises migranosas perimenstruais tendem a ocorrer 2 dias antes até 3 dias após a menstruação. As crises migranosas tendem a ser incapacitantes e refratárias a terapias abortivas iniciais.1,6
Não há terapias abortivas que sejam especificamente aprovadas para as crises menstruais relacionadas ao período menstrual.5 Sendo assim, a terapia é direcionada a partir das mesmas drogas utilizadas no período fora da menstruação. Uma estratégia possível é referida como “miniprevenção”, em que os pacientes são instruídos a realizar a terapia abortiva (anti-inflamatórios ou triptanos) duas vezes ao dia durante o período com cefaleias que possam ser previsíveis (geralmente cinco dias em média).6 Em casos de má resposta a miniprevenção, estratégias preventivas não hormonais podem ser utilizadas, com base nas recomendações de terapia tradicionais já presentes em guidelines para migrânea.6,7
Migrânea na gestação e no pós-parto
Grande parte das cefaleias primárias migranosas que ocorrem na gestação tendem a ser preexistentes, mas, claro, há uma parcela dos casos nos quais a cefaleia pode ocorrer de modo “novo” durante o contexto da gestação, do puerpério e da lactação.6
A maioria dos estudos mostra que a migrânea tende a melhorar no curso gestacional. Contudo, é importante considerar que o planejamento de concepção e o primeiro trimestre de gestação pode ser desafiador, visto que é nessa época em que há a possibilidade de suspensão de terapias profiláticas de uso regular e limitação de terapias abortivas.6,8 Ainda nesse período, podem ocorrer flutuações hormonais que influenciam nas frequências de migrânea. Por outro lado, no segundo e no terceiro trimestre de gestação, período no qual há uma maior estabilização dos níveis hormonais, pode ocorrer uma melhora considerável das frequências de migrânea.6,8 Inclusive, estudos demonstram que mulheres com história de migrânea relacionada à menstruação experienciam melhores níveis de controle de dor durante a gestação.8
Já no período pós-parto, caracterizado por queda abrupta dos níveis de estrogênio, pode ocorrer uma recorrência dos eventos migranosos. Mais de 1/3 das mulheres experimenta recorrência de migrânea após uma semana do parto, enquanto mais de 2/3 podem apresentar uma crise dentro de um mês pós-parto.8
Um hábito que pode auxiliar na atenuação desses eventos migranosos após a queda abrupta do nível de estrogênio é a amamentação.6 Mulheres lactantes, através dos níveis elevados de prolactina, possuem supressão ovulatória, de modo que os níveis de estradiol não apresentam flutuação significativa.6 Em estudo prospectivo longitudinal, mulheres lactantes apresentaram menores recorrências de cefaleia um, três e seis meses após o parto, ao comparar com não lactantes.9
Durante a gestação, puerpério e lactação, é recomendado sempre que possível a priorização de estratégias não farmacológicas para controle da migrânea. São preferíveis, portanto, recursos como atividades de relaxamento, mindfullness e biofeedback.10
Caso sejam necessárias terapias farmacológicas, abortivas ou profiláticas, um grande desafio nesse período é balancear os riscos e os benefícios da droga na saúde da mãe e do feto.
No período gestacional, de acordo com as recomendações da International Headache Society (IHS) publicadas nesse ano na Cephalalgia,9,10 a terapia farmacológica abortiva pode contemplar a prescrição de acetaminofeno/paracetamol e triptanos se administrados com cautela durante os três trimestres gestacionais para controle de dor; enquanto metoclopramida pode ser adicionada em casos de náuseas/vômitos. Considerando a terapia farmacológica profilática, por meio de recomendações da mesma sociedade,7 bloqueio de nervo periférico é uma opção de primeira linha; e caso não haja controle efetivo com essa medida, é sugerido propranolol ou amitriptilina – após equilibrar riscos e benefícios e informar à mãe gestante sobre os efeitos secundários potenciais e riscos atrelados. Caso propranolol seja iniciado, a droga deve ser suspensa no terceiro trimestre para evitar riscos ao feto e ao neonato.7 Em casos de mulheres gestantes com migrânea crônica, não responsivas a medidas iniciais, a toxina botulínica (onabotulinumtoxinA) pode representar um recurso após balancear riscos e benefícios diante de seus efeitos sistêmicos limitados.7
Já no período da lactação, segundo as recomendações da IHS,10 a terapia farmacológica abortiva possui, como droga de escolha, paracetamol ou acetaminofeno. Diclofenaco, naproxeno, triptanos e gepants (esse último ainda não aprovado no Brasil) podem ser utilizados com cautela e, se administrados, a amamentação deve ser adiada em período entre 8 a 12 horas. Como opções de terapia farmacológica profilática,7 bloqueio de nervo periférico também é opção de primeira linha e, caso não seja efetivo, pode ser realizado propranolol ou amitriptilina após conversa sobre efeitos secundários potenciais e riscos associados com a mulher. Candesartana é opção quando usada com cautela.7 Anticorpos monoclonais anti-CGRP podem ser usados com cautela após duas semanas do parto.7 Em casos de migrânea crônica, toxina botulínica (onabotulinumtoxinA) pode ser considerada.7
Migrânea na menopausa
A transição para a menopausa na mulher compõe diversos estágios caracterizados por alterações hormonais, principalmente o período perimenopausa (com maior irregularidade dos ciclos menstruais) e período pós-menopausa (pelo menos 12 meses após o último período menstrual).
Embora os efeitos de transição para menopausa na migrânea sejam pouco explorados na literatura, há estudos anedóticos que indicam piora da frequência de cefaleias migranosas durante essa transição e, após a menopausa, esses ataques se tornam mais amenos.6,11 Geralmente mulheres com história de migrânea menstrual experimentam piora desses sintomas durante a transição para a menopausa.11
Para mulheres que passam por menopausa cirúrgica, as evidências demonstram um agravamento das crises migranosas.6,11 Isso indica que a influência dos níveis hormonais e o momento das interações hormonais na migrânea são mais complexos do que pode ser explicado por mecanismos simples de retirada hormonal.6
Contraceptivos e terapia de reposição hormonal na migrânea
Processos fisiológicos como menstruação, gestação e lactação representam alterações hormonais endógenas que, como já descrito anteriormente, impactam a perspectiva de migrânea na mulher. As terapias hormonais, por sua vez exógenas, também impactam o contexto de migrânea na mulher, ainda que esse impacto possa variar conforme tipo, composição, tempo e a via de administração.11
Métodos contraceptivos hormonais são comumente utilizados para manejo dos ciclos menstruais e prevenção de gestação, apresentando disponibilidade para diversas vias de administração. Entre eles, os anticoncepcionais orais combinados (compostos por derivados do estrogênio e progesterona) são um dos recursos mais prevalentes. Evidências apontam que o uso de anticoncepcionais orais combinados geralmente aumenta a frequência dos sintomas migranosos.11 Inclusive, a exacerbação dos eventos migranosos pode ser mais prevalente em mulheres com migrânea com aura ao comparar com migrânea sem aura.11 Os principais períodos de exacerbação das crises ocorrem durante o intervalo de pausa hormonal da pílula. Uma possível estratégia é a administração contínua do método contraceptivo na redução das crises.11 Um outro dado interessante é que formulações com baixa dose de estrogênio nos contraceptivos orais combinados podem reduzir o impacto desses eventos migranosos.11
A terapia de reposição hormonal (TRH), por sua vez, é recurso utilizado após a menopausa para atenuar sintomas experimentados pela mulher nessa fase, como fogachos, irritabilidade, insônia, alterações do humor e osteoporose. Os efeitos da TRH na migrânea permanecem inconsistentes na literatura, ainda que alguns estudos demonstrem certa exacerbação dos episódios migranosos.11 No geral, nota-se que os efeitos da TRH na migrânea são influenciados pela composição, dose e via de administração dessas terapias.11
Há dados epidemiológicos que demonstram a associação entre migrânea, especialmente com aura, com eventos cerebrovasculares. Uma revisão sistemática com metanálise recente com grande número amostral indicou que indivíduos com migrânea possuem risco para acidentes cerebrovasculares, sendo a migrânea com aura (RR 1.95; IC 95% 1.62–2.34; I² 89.7%; p<0.001) com maior risco ao comparar à migrânea sem aura (RR 1.35; IC 95% 1.18–1.55; I² 85.4%; p<0.001).12 O risco para acidente cerebrovascular em pacientes com migrânea pode ser maior para mulheres sob uso de certas terapias hormonais, principalmente aquelas com presença de reposição de estrogênio.13,14
Segundo documento de critérios médicos de elegibilidade para uso de contraceptivos pela Organização Mundial de Saúde (OMS),13 mulheres com migrânea podem, em geral, usar contraceptivos orais combinados (COCs), levonorgestrel (LNG) ou ulipristal (UPA) para contracepção de emergência, classificados como categoria 2 da OMS. Para casos de pacientes com migrânea com aura, de qualquer idade, o uso de contraceptivos orais combinados não é indicado (categoria 4 da OMS), considerando o aumento de risco para AVC.13 Já para casos de migrânea sem aura, as mulheres abaixo de 35 anos podem realizar contraceptivos orais combinados (categoria 2-3 da OMS); enquanto para mulheres acima de 35 anos a prescrição desses contraceptivos combinados já não é indicada (categoria 3-4 da OMS).13 É ressaltado que para mulheres com migrânea sem aura que apresentem fatores de risco cardiovasculares o risco de AVC é maior e, portanto, o risco de contraceptivos combinados nesse contexto também é maior.13,14
Uma recomendação da European Headache Federation e da European Society of Contraception and Reproductive Health é a prescrição de anticoncepcionais orais contendo somente progesterona para mulheres que apresentem migrânea com aura ou para aquelas com migrânea sem aura com comorbidades cardiovasculares.4,14,15
PP-NNT-BRA-0057/ OUTUBRO 2024
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