Biomarcadores digitais: entraves no uso para doenças neurodegenerativas
Tecnologias voltadas para o consumidor como smartphones, smartwatches e tablets, atualmente, possibilitam a coleta passiva e ativa de dados fisiológicos e comportamentais do indivíduo como fala, sono, movimento ocular, habilidades motoras, entre outros. Esse potencial de coleta de dados contínua tem gerado grande interesse no uso dessas tecnologias para pesquisa clínica, especialmente no campo das doenças neurodegenerativas, onde muitos casos apresentam sintomas cognitivos, comportamentais ou motores prodrômicos antes que a doença possa ser clinicamente diagnosticada.
Uma vantagem do uso de biomarcadores digitais a investigação de doenças neurodegenerativas é que essas ferramentas podem fornecer um preço mais acessível e menos invasivo para caracterizar o funcionamento das atividades diárias de vida, possibilitando fornecer informações que complementam visitas clínicas, assim como facilitando a detecção precoce, a previsão de resultados relacionados à saúde e o monitoramento longitudinal dos pacientes.
O JAMA Neurology publicou nesse ano um viewpoint de autoras, com afiliação do departamento de Ética Médica e Política em Saúde da University of Pennsylvania Perelman School of Medicine, que realizam uma reflexão sobre os desafios na implantação de biomarcadores digitais como um potencial ferramenta investigativa.
Desafios dos biomarcadores digitais
Um dos grandes desafios da aplicação dos biomarcadores digitais ocorre pelo potencial em coletar dados que não necessariamente estejam relacionados à saúde diante de uma tecnologia onipresente.
Em toda pesquisa é importante o consentimento de participação e, em caso de uso de biomarcadores digitais, esse ato não pode ser presumido. Um movimento de transparência fornecido pelas empresas é importante sobre a coleta de dados e como serão analisados. Por exemplo, um “smart” refrigerador pode ser inicialmente adquirido para ajudar o usuário a lembrar de comprar itens, mas, eventualmente, seu padrão de uso pode revelar sinais de comprometimento cognitivo, sem que o consumidor perceba essa possibilidade. Por isso, é essencial que haja lembretes periódicos para garantir que o usuário esteja ciente de como os dados estão sendo utilizados.
Em casos de empresas de tecnologia, muitos usuários americanos acreditam que suas informações de saúde sejam protegidas por leis de privacidade (Health Insurance Portability and Accountability Act). Contudo, nesse viewpoint é descrito que dados gerados através de interações do usuário com essas empresas não necessariamente sejam cobertos pela HIPAA e dependendo dos termos de serviço, os dados do usuário podem ser compartilhados ou até mesmo vendidos a terceiros que poderiam usá-lo para uma infinidade de propósitos. Empresas devem promover a transparência e a compreensão do consumidor de como os dados serão usados e, embora exista uma colcha de retalhos de leis estaduais norte-americanas de privacidade que protegem os dados do consumidor, não há leis federais nos EUA com regulamentações relativas à privacidade das informações digitais de saúde e do consumidor.
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Um grande desafio é a desigualdade na distribuição de tecnologias de consumo. Esse fato por si já proporciona um viés em selecionar a população que possui esses biomarcadores e, portanto, reunir informações relevantes para doenças neurodegenerativas apenas nessa população (possibilitando a exclusão de populações mais vulneráveis). Um exemplo citado é o uso de acelerômetros de smartphones para detectar alterações da marcha em Doença de Parkinson e em Esclerose Múltipla. Apesar de um elevado nível geral de propriedade de smartphones, existem diferenças notáveis na propriedade por renda familiar, nível de educação formal e raça. Como resultado, os membros de grupos desfavorecidos são os que menos provavelmente se beneficiarão de biomarcadores digitais. Governos e empresas devem colaborar para melhorar o acesso às redes, promover alfabetização digital e garantir que os dispositivos sejam acessíveis para todos, já que o acesso digital é hoje um determinante importante de saúde.
Os biomarcadores digitais também levantam questões de viés e validação. Estudos mostram que algumas ferramentas de saúde digital funcionam melhor em populações mais jovens ou em pessoas com pele mais clara. Isso representa um risco de que esses biomarcadores reflitam e agravem disparidades de saúde preexistentes. É essencial que desenvolvedores validem essas tecnologias em populações diversas e realizem auditorias periódicas dos algoritmos para garantir maior equidade nos resultados de saúde.
Outro ponto delicado é a possibilidade de discriminação. Smartphones coletam constantemente dados do usuário, incluindo informações de localização. Embora não estejam inerentemente relacionados com a saúde, estes dados tornam-se indiscutivelmente mais sensíveis quando visualizados através da lente de doenças neurodegenerativas. Dados de localização coletados por smartphones, por exemplo, podem identificar mudanças em padrões de direção entre motoristas com e sem biomarcadores tradicionais de Doença de Alzheimer. Essas informações, embora relevantes para a saúde do usuário, poderiam ser usadas por seguradoras para ajustar prêmios ou por órgãos governamentais para definir critérios mais rígidos de renovação de habilitação. Essa possibilidade levanta questões éticas e a necessidade de regulamentações que evitem o uso discriminatório de biomarcadores digitais.
Mensagem final
Os biomarcadores digitais oferecem inúmeras vantagens para o campo da neurociência, especialmente na detecção precoce e no acompanhamento de doenças neurodegenerativas. Contudo, abordar os desafios que acompanham essas tecnologias requer uma abordagem multifacetada, envolvendo pesquisadores, clínicos, consumidores, empresas e agências regulatórias.
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