Conheça a síndrome de vasoconstrição cerebral reversível
A síndrome de vasoconstrição cerebral reversível (RCVS) é uma entidade clínica-radiológica em que ocorre constrição de segmentos de vasos arteriais intracranianos ainda que reversíveis. É também conhecida por epônimos prévios como “síndrome de Call Fleming”. RCVS é um termo, proposto em 2007, que descreve um grupo de transtornos nos quais são caracterizados por cefaleia em trovoada podendo (ou não) apresentar complicações neurológicas decorrentes de vasoconstrições de vasos arteriais cerebrais reversíveis.
Esse ano, a revista Journal of Clinical Medicine, publica revisão sobre essa condição que, embora rara, o seu reconhecimento proporciona uma melhor assistência clínica.
Epidemiologia e Fisiopatogenia
A síndrome de vasoconstrição cerebral reversível é rara, com incidência estimada em torno de 3 casos a cada milhão de adultos. Ainda que possa ocorrer em qualquer faixa etária, ocorre em média aos 40-55 anos de idade com maior prevalência em mulheres. Um outro dado importante é que a RCVS é um dos potenciais causadores de AVC em jovem.
O mecanismo patogênico atrelado à RCVS não é plenamente elucidado, ainda que haja evidências indicando um papel de disfunção endotelial, de hiperativação simpática e de mecanismos específicos relacionados a uso de determinados fármacos nesse processo.
Embora possa ocorrer de forma espontânea (RCVS primária), em 40-60% dos casos pode ser induzida (RCVS secundária) por gatilhos, como:
- Drogas: inibidores de recaptação de serotonina (IRSS), inibidores de recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSN), ciclofosfamida, fingolimoide, tacrolimus, eritropoetina, imunoglobulina intravenosa, triptanos, derivados de ergot, cocaína, derivados de anfetamina, ecstasy, prednisona etc.
- Pré-eclampsia e eclâmpsia.
- Neoplasias como feocromocitoma e tumores neuroendócrinos.
- Traumatismo cranioencefálico e procedimentos neurocirúrgicos
- Porfiria
- Condições vasculares como endarterectomia carotídea, aneurisma cerebral não-roto, hematoma subdural espinhal etc.
- Situações como esforço físico, evento emocional, atividade sexual (tosse, riso) e tomar banho.
Manifestações clínicas
O grande marco clínico de RCVS, presente em 85-100% dos casos, é a cefaleia em trovoada. A cefaleia em trovoada é descrita como a “pior cefaleia da vida”, na qual o paciente apresenta cefaleia de início súbito, com alcance na intensidade máxima de dor em menos de 1 minuto. Esses episódios de cefaleia podem ser desencadeados a partir de atividade sexual, exercício físico, em atividades que envolvam manobra de Valsalva (como tosse) e eventos emocionais.
Além de cefaleia, a RCVS pode apresentar déficits neurológicos focais em 8-43% dos casos. Tais alterações podem ser correspondentes a complicações neurológicas decorrentes de isquemia cerebral (39%), de hemorragia cerebral intraparenquimatosa (20%), de hemorragia subaracnóidea convexa (34%) ou de síndrome de encefalopatia reversível posterior (38%). Outra característica clínica potencial presente é a incidência de crises epilépticas, ainda que raras (presentes em 7-17% dos casos).
O percurso clínico de vasoconstrição cerebral apresenta pico em torno de 9-13 dias após início da cefaleia em trovoada inicial, progredindo em um padrão de acometimento do vaso distal para vaso proximal.
Diagnóstico
Segundo a International Headache Society (IHS), a cefaleia atribuída à RCVS deve contemplar os seguintes critérios diagnósticos descritos no Quadro 1.
Cefaleia atribuída à Síndrome de Vasoconstrição Cerebral Reversível |
A: Cefaleia com as características presentes no item C. |
B: Síndrome de vasoconstrição cerebral reversível diagnosticado por exame complementar. |
C: Evidência causal demonstrada por um ou ambas as características: (1) Cefaleia, com ou sem déficits neurológicos, com angiografia detectando sinal radiológico de “colar de contas” e/ou (2) Cefaleia com pelo menos uma das características: a) início em trovoada; b) desencadeada por atividade sexual, esforço físico, tomar banho, manobra de Valsalva ou evento emocional; c) Presente ou recorrente durante ≤ 1 mês após o início e sem novos eventos de cefaleia significativa após 1 mês. |
O vasospasmo inicialmente envolve vasos cerebrais mais distais e, de modo centrípeto, pode irradiar para vasos de maior calibre ao longo dos dias ou semanas. Portanto, pode ocorrer de exames como angioressonância de crânio serem normais em 22% dos casos na fase inicial da RCVS. Ainda assim, no exame de ressonância de crânio no estágio inicial das manifestações clínicas é possível encontrar hiperintensidades vasculares na sequência T2/FLAIR ao redor dos sulcos corticais (correlacionando com o fluxo lento na superfície cortical). Comumente esse achado radiológico é bilateral, envolvendo territórios de artéria cerebral média e artéria cerebral posterior. É importante destacar que esse achado é distinto de hemorragia subaracnóidea, visto que não há alterações de hipointensidades em sequências de SWI.
Como dito anteriormente, a síndrome de encefalopatia reversível posterior (PRESS) e a RCVS compartilham mecanismos fisiopatológicos como disfunção endotelial, quebra de barreira hematoencefálica e prejuízo na autorregulação cerebral, de modo que possa ocorrer edema vasogênico que pode ser detectado como hiperintensidades na sequência de ADC. Ainda assim, algumas diferenças podem ser avaliadas entre PRESS e RCVS na ressonância de crânio. Na PRESS, o edema vasogênico é observado de forma simétrica em regiões corticais e subcorticais dos lobos parieto-occipitais, enquanto na PRESS associada à RCVS esse achado é mais assimétrico.
Uma forma de visualizar o próprio vasoespasmo cerebral é através do exame contrastado como angioressonância ou angiotomografia de crânio. O uso do contraste possibilita avaliar a quebra da barreira hematoencefálica, que é um fator de risco independente para risco para complicações neurológicas como hemorragia subaracnóidea (que nesses casos segue padrão mais cortical e convexo) e PRESS.
O padrão-ouro para detecção de RCVS é a angiografia cerebral, na qual pode ser observado estreitamento cônico seguido por segmentos dilatados de vasos arteriais cerebrais. Essa alternância de estreitamento e alargamento dos vasos arteriais é responsável pelo achado radiológico de “salsicha na aparência de cordas”. Ainda sendo o padrão ouro, na primeira semana dos sintomas, um terço dos casos pode apresentar avaliação angiográfica normal. Como a RCVS trata-se de condição reversível, os achados angiográficos podem se normalizar comumente em torno de 8-12 semanas.
O Doppler transcraniano pode ser um recurso interessante para avaliar o vasoespasmo através do aumento dos perfis morfovelocimétricos das artérias carótidas internas, artérias cerebrais médias e anteriores. O exame sonográfico pode ser inconclusivo nos estágios iniciais, enquanto maiores picos da velocidade podem ser observados aproximadamente 3 semanas após o ictus. É um exame interessante para follow-up do caso com a facilidade de ser realizado a beira leito.
Geralmente os achados radiológicos da RCVS são bem distintos de outras patologias vasculares (como dissecção, displasia fibromuscular e vasculite). Contudo, o principal mimetizador de RCVS é a vasculite de sistema nervoso central primária (PACNS), que geralmente afeta vasos de grande calibre do Polígono de Willis e de seus ramos colaterais envolvidos. Nessa publicação da Journal of Clinical Medicine, um conselho para distingui-las seria exames de ressonância de parede vascular em que geralmente não é encontrado realce de contraste na parede arterial afetada na RCVS (diferente da PACNS em que esse realce pode ser encontrado).
Por fim, critérios diagnósticos para RCVS foram propostos, podendo ser observados através do escore de RCVS-2 que possibilita a confirmação diagnóstica com boa acurácia. Trata-se de escore com resultados que variam entre -2 a +10. A partir de um resultado ≥ 5 no escore RCVS-2, o diagnóstico para RCVS apresenta uma alta sensibilidade (90%) e alta especificidade (99%); enquanto, por outro lado, um resultado ≤ 2 nesse mesmo escore possui especificidade de 100% para excluir RCVS. No Quadro 2 é possível visualizar o escore RCVS2 com suas respectivas pontuações.
Escore RCVS-2 | |
Cefaleia em trovoada única ou recorrente | Presente: 5 pontos | Ausente: 0 pontos |
Envolvimento de carótida intracraniana | Afetada: -2 pontos | Ausente: 0 pontos |
Gatilho de vasoconstrição presente | Presente: 3 pontos | Ausente: 0 pontos |
Gênero | Mulher: 1 pontos | Homem: 0 pontos |
Presença de hemorragia subaracnóidea | Presente: 1 pontos | Ausente: 0 pontos |
Tratamento e Prognóstico
As recomendações de tratamento para essa condição são baseadas em estudos observacionais, série de casos e opinião de especialistas, diante de limitação de publicação de evidências com ensaios clínicos randomizados. Portanto, o tratamento permanece sintomático, em que é necessário: eliminar os potenciais fatores causais de RCVS, garantir controle álgico (devendo ser evitados uso de indometacina e triptanos por poder acentuar a vasoconstrição), prescrição de bloqueador de canal de cálcio (nimodipino). Em casos de vasoconstrição cerebral grave, hipotensão deve ser evitada.
Ainda que haja um benefício incerto de atuação sobre a vasoconstrição cerebral, um estudo observacional prospectivo conduzido em 2019 demonstrou que a sua administração precoce teve relação com um curso clínico mais curto, sugerindo uma possível estabilização a vasoconstrição com uso desse fármaco e, consequentemente, de complicações atreladas à vasoconstrição.
Outras terapias (magnésio intravenoso, milrinone intra-arterial, angioplastia por balão) são alternativas já descritas na literatura, mas com escassez de evidências robustas sobre benefício no tratamento da RCVS.
Em geral, o prognóstico de RCVS é favorável, na qual mais de 90% dos casos apresentam bom desfecho funcional (com escala modificada de Rankin entre 0-1). Ainda assim, 50% dos pacientes acometidos podem continuar a ter cefaleias crônicas e até 26% desenvolve depressão no seguimento.
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